Não foi falta de espaço nem de tempo. Havia uma página em branco, uma caneta, um retrato dela sobre a mesa. O retrato foi trazido pelo vento, insinuante e perigoso, que me obrigou a fechar a janela.
Velhas folhas de árvore um tanto ressecadas invadiram o recinto, espalhando pó e asas de insetos por todo o canto. A vassoura preguiçosa não quis se mexer e aos velhos pós foram somados outros, preguiçosos e sujos.
A foto, um pouco amarelada, trouxe a recordação de um dia de sol, brilhante, claro demais, como pareciam os sentimentos naquele instante.
Abraços, beijos, flores, sorvete, uma rosa roubada de uma praça, uma velhinha simpática cruzando a rua com olhar de cumplicidade, outra com olhar de censura. Um longo beijo para satisfazer a primeira, provocando na Segunda um ar austero e invejoso.
As pedras do calçamento amaciaram o caminho dos pés enquanto as ladeiras eram vencidas sem pressa. Imagens interrompidas pelo barulho da água, salpicando a janela, anunciando a tempestade refrescante do meio de tarde. Raios e trovões demonstraram que a mitologia nórdica continuava presente no cotidiano dos vivos ocidentais. Um raio clareou a rua e apagou a luz.
O papel surgiu novamente, ao lado do retrato amarelado. Amarelo como o sorriso do dia da despedida. No meio de uma praça cujo chafariz foi interditado pela prefeitura, tendo pombos como testemunhas, crianças e babás alienadas.
A caneta trazia o letreiro de uma empresa multinacional, presente de saída rápida. A carga não funcionava direito, tinta velha provavelmente.
O ruído da chuva ficou mais intenso, como foi o amor do primeiro tempo. As cortinas fustigadas pelo vento que ultrapassou as ventarolas trouxeram gotículas de água para o recinto, espalhando papéis, tornando o quarto uma confusão total.
Um trovão rompeu a tarde, o raio feriu a terra não muito distante. Feridas, pensamentos, ruídos do peito e da alma.
O retrato sumiu no meio da escuridão provocada pela chuva densa. Sumiu o retrato, sumiu a visão dos objetos que carregavam as lembranças. No meio da balbúrdia o telefone tocou. Apenas uma vez.
Provavelmente estava avisando que a vida é uma só, embora os amores possam ser muitos. A foto dela foi substituída pelo rosto de outra mulher que abriu a porta e correu da chuva...
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