SOU EU OU ÉS TU ?!...
Palavra por palavra não há neste contozinho qualquer espécie de artifício ou efeito que pretenda sobretudo produzir verosimilhança. Todos os vocábulos são necessários e têm identificado lugar próprio no pormenor descritivo, incluindo mesmo o expurgo racional que se intenciona equacionar.
O Big Ben do Porto - com símbolo The Big Ben inglês - situa-se na Rua Gonçalo Cristóvão, mesmo defronte ao sombrio edifício onde se implanta o Jornal de Notícias. Trata-se de um dos mais antigos restaurantes da cidade que, salvo aos Domingos, funciona permanentemente 24 horas sucessivas e consecutivas. Era assim no tempo de Salazar e assim contínua no tempo de Santana.
Ao longo das noites e das madrugadas, o Big Ben tem uma diversificadíssima clientela, que vai de engenheiros, advogados, médicos, jornalistas, estudantes universitários, polícias, senhoras polidas e crianças, a ladrões de toda a espécie, bêbados, deficientes, drogados, putas, paneleiros e, ultimamente, dezenas e dezenas de travestis, cuja maioria é oriunda do Brasil. Momentos há em que a noite é de vómito e até dá prazer vomitar.
De mês a mês, por motivos de pura lana-caprina, estabelece-se a confusão geral e o Big Ben parte-se todo desde as montras até às sanitas. Como a vida continua e tem de continuar, na jornada seguinte o Jornal de Notícias distribui-se de mão em mão sem uma única referência ao estardalhaço anteriormente ocorrido. Os dois vizinhos, anão e gigante, amam-se e entendem-se como se praticassem sexo do género do caracol...
Eu sou na actualidade o mais antigo cliente e assíduo frequentador do Big Ben. Não estava com o Rui Cancela havia já cerca de um ano e o Rui, por volta das três da madrugada, entrou uma dada noite inesperadamente no célebre lupanar portuense. Claro, o abraço e a efusiva saudação que trocamos deu logo no olho geral. E falamos, falamos de coisas gradas e não gradas, entre um lagar de copos e o habitual putedo acolitante.
Não tenho em absoluto que justificar-me e fundamentar seja o que for. Sou um indivíduo completamente livre-e-preso na corrente da estúpida sociedade hodierna em que estou inevitavelmente envolvido. Felizmente, em iniciado gozo de reforma, cômo, bebo, mijo, cago, durmo como quero e quando quero.
Voltando à cena, em cima do passo do animado convívio que estava a ter com o Cancela à mesa, uma putéfia brasileira - poderia ter sido portuguesa ou húngara - interveio de repente, dirigindo-se-me, e disse:
- Cala a boca...
- Calo o quê?...
- Cala a boca, senão leva com garrafa...
Parece-me que brasileiro tem no sangue o hábito de, por tudo e por nada, mandar calar a boca a outrem. No caso e na altura apeteceu-me de imediato mandar a gaja pró caraças, mas algo me entrou na caixa dos pirolitos a prometer-me uma deliciosa vingança. A tipa era boa, simpática de rosto, tinha um par de balões pedindo o céu, uma bunda a sério e uma coxa para satisfazer o mais amplo abraço. Por consequência, calei mesmo a boca, paguei mais duas rodadas de copos e amenizei tranquilamente a questão...
Fim abrupto de contozinho:
Às oito da manhã, numa pensão da Rua de Camões, a Zaida estava com o "meu-mais-que-tudo" todo enfiado na boca. E não é que mamava, mamava gostosamente a preceito?... Entretanto, olhando consoladoramente para os pelos de meu peito, eu apenas pensava: afinal, quem é que cala a boca... Sou eu ou és tu ?!...
Torre da Guia = Portus Calle |