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Artigos-->Apesar das segundas-feiras (resenha) -- 29/01/2001 - 22:23 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
[Ignácio de Loyola Brandão: O homem que odiava a segunda-feira (contos)]





Há várias maneiras de se ler um livro. Em Angústia, de Graciliano Ramos, em certo momento da dura labuta de operário da palavra, o narrador - que, como Graciliano e Loyola Brandão é também jornalista - afirma: "Qualquer livro lido por obrigação é um estrupício".

A proposta de ler O homem que odiava a segunda-feira com a obrigação de escrever uma resenha me acenava assim com as piores expectativas, podendo a obrigação, no caso, comprometer seriamente a minha recepção da obra.

Há várias maneiras de se ler um livro. Por isso mesmo, eu me predispunha a crer nas "aventuras possíveis" do subtítulo, o que, já de saída, me prevenia de cair no mesmo tom rancoroso do narrador-personagem do primeiro conto. Ele começa destilando o seu mau-humor por conta de formigas com que se depara no açucareiro pela manhã, coisa que só pode mesmo creditar às segundas-feiras, quando tudo, o pior acontece. E esse mau-humor vai, incontinenti, bater na orelha do zelador e se espalhar pelo prédio, pelos arredores, pelas padarias ("esse costume tão paulistano"), pela cidade, pelo mundo, pelo livro inteiro.

E por esse mundão afora vamos conhecer os diversos personagens, que vão surgindo e tornando a surgir em circunstâncias as mais inesperadas ao longo das páginas deste livro, já que pertencem, todos, a esse mesmo mundo caótico e luminoso da cidade grande: o homem que perdeu a mão na caixa do correio; o homem que odiava a segunda-feira; a esposa do homem que odiava a segunda-feira; a ex-namorada do narrador, nua na foto feita por uma polaróide; a mulher que fugiu com o dono da locadora em busca de uma vida mais recheada de peripécias, ou melhor, de fitas de vídeo; o homem que perdeu a própria sombra; e a multidão dos anônimos, malucos, supersticiosos, neuróticos, surtantes, ignorantes, indiferentes, passantes, vendedores, compradores de carro, cheiradores de cola, pesquisadores, apresentadores de tv, membros de igrejas pentecostais, organizações não-governamentais, enfim, um enorme contingente, órfãos de um tempo em que se podia, com tranqüilidade, explicar o que é o mundo a uma formiga, acreditando mesmo saber o que é o mundo.

Mas, por baixo desse mau-humor incurável, desse horror às segundas-feiras, desse horror a tudo, que vai perpassar todas as falas e reflexões dos personagens destes quatro contos e uma quase-novela, há inúmeras aventuras possíveis.

Para além de todos os grandes temas que os perpassam, para além das leituras preocupadas com desvendar-lhes o conteúdo, a mensagem, o leitor pode seguir também, e quiçá com melhor proveito, o fio anunciado pelo subtítulo.

Uma grande aventura é, sem dúvida, acompanhar as narrativas com uma lupa, a exemplo do que faz o personagem-narrador para melhor compreender a expressão facial daquela sua interlocutora muito especial, uma formiguinha, a derradeira, posto que, decidido, de todas as outras havia dado cabo.

E nós, leitores, vamos por aí, à cata dessa grande aventura que é fazer (escrever e ler) literatura.

Logo à primeira página, em meio ao mau-humor do diálogo com o zelador, surge a primeira de uma série de questões com que o narrador constantemente se debate, quando dialoga, e isso vai se repetir, para deleite do leitor, pelas cento e sessenta e quatro páginas do livro, com o seu próprio material de trabalho, as palavras. O zelador lhe diz "... chame o formigueiro". No caso, alguém que entende de formigas. Mas o susto não tem a ver tanto com o vocábulo inesperado, mas com o fato de que houvesse alguém assim especializado em plena São Paulo, e isso como se fosse fato óbvio ali haver formigas, num apartamento, no alto de um arranha-céus, em meio à selva de cimento.

E o leitor já se sente atraído para esse jogo das "aventuras possíveis", do trabalho com a linguagem, da convivência em intimidade com as palavras, que é a marca dos autores, num certo sentido, verdadeiramente engajados.

O leitor vai saber depois, ou duvidar então, juntamente com o narrador, da existência de "semanólogos" e "despertólogas". Vai compartilhar de atrações ou repulsas com relação a vocábulos como "exdrúxula", "dissabores", entre tantos outros. Vai saber que o Aurelião serve e não serve para alguma coisa, mas há que consultá-lo, para saber que "lá" também quer dizer "às abas". Vai se surpreender com as suas próprias dúvidas, inseguranças, surpresas, encantamentos com o próprio idioma, cúmplice que é do narrador. Vai conhecer um "soteropolitano atabalhoado". (Ah! Um soteropolitano. Também conheço essa palavra de gincana!) Vai saber que chefes de gabinete falam "sem vírgulas, apenas com um ou outro ponto para respirar". Vai acompanhar um diálogo ("possível"!) entre alguém que fala com algumas consoantes maiúsculas (em "KersgatoNula! KersgatoiNula!") e uma outra que também fala aquelas mesmas palavras indecifráveis da sua mesma língua comum, o português (?), só que com algumas vogais maiúsculas. E depois o leitor vai saber que enquanto falam, se fazem compreender, como nos filmes estrangeiros, por uma legenda azulada projetada na testa. E, em meio àqueles vocábulos esquisitos, uma idéia se intromete, revestida de uma das nossas tantas palavras-de-Tróia: procurar um "otorrinolaringologista".

E são inúmeras as trilhas do bom-humor espalhadas por esse verdadeiro arsenal de curiosidades e surpresas lingüísticas aqui arregimentadas pelo autor, para não falar desse outra grande fonte de surpresas, de prazeres, de aventuras possíveis, que são as pérolas flagradas em nosso falar cotidiano, esse nosso repertório comum, o mar de informações em que naufragamos.

Em dado momento, o narrador, com razão, se pergunta se esse mundaréu de informações também é conhecimento. Ou então, podemos arriscar dizer, há aventuras sem conta nesse nosso relicário-pop de bobagens, naquilo que se ouviu dizer, naquilo que se leu não se sabe muito bem onde, nas coisas em que acreditamos ou não acreditamos, que ficaram por aí ao longo da estrada, ditos e não-ditos, parlendas, toleimas, besteiras, de um tempo em que não se dizia, por exemplo, "zoar", mas sim "gozar", e coisas quetais: o som do Fantástico, a voz do Silvio Santos, os grandes longuíssimas-metragens do cinema em seus tempos heróicos, uma peça recente sobre as irmãs Linda e Dircinha Batista, os congestionamentos de helicópteros no céu de São Paulo, as gírias, Doris Day, o filme Cabaret e as inúmeras outras referências ao cinema - uma das paixões do autor -, o virus MondayMonday, que faz o narrador se lembrar de um sucesso dos Beatles e leva o leitor a conferir se aquele não fora um lapso, se não era afinal dos Mamas and Papas aquela música em homenagem à segunda-feira.

Tudo isso servindo a uma reflexão muito ampla e profunda sobre os acontecimentos que nos acometem neste momento da nossa acidentada e vertiginosa trajetória comum. E, sobretudo, uma reflexão sobre tudo aquilo que se criou em termos de repertório lingüístico enquanto todas essas bobagens iam, estão, irão acontecendo. Premido pela aceleração dos acontecimentos, deliciosamente, o narrador patina sobre os tempos verbais e sobre o que seria deles, caso a noção de tempo por nós conhecida e praticada viesse de fato a desaparecer.

Esse bom-humor, presente em cada linha ou entrelinha da lavra mais recente de um autor que alguns insistem em tratar como sendo um pessimista notório, tem sua raiz, certamente, na crença de que todas as aventuras, apesar das segundas-feiras, ainda são possíveis. Especialmente essa grande aventura que só a literatura permite, brindando-nos com um outro olhar sobre aquilo que nos é mais familiar, o nosso dia-a-dia, as nossas palavras mais corriqueiras.

Um livro de cuja leitura saímos de certa forma justificados, como que restabelecidos, e profundamente gratos pela proximidade que o seu narrador nos oferece, pela revelação de que a comunicação ainda é possível, de que este mundo que com ele dividimos é possível, sim, e cheio de aventuras imprevisíveis. Como nos gibis, como na literatura escrita para crianças e para jovens, como nas matinês de antes, como nas sessões de cinema de sempre, como nas mais inquietantes narrativas dos românticos (De Adelbert von Chamisso, Loyola reescreve o Peter Schlehmil, o homem que vendeu a sombra ao diabo), como nas mais ousadas aventuras imagéticas dos surrealistas (na capa, um Magritte), enfim, como na melhor literatura.

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