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Contos-->UM CONTO SOBRE UMA AMARGA FLOR -- 05/09/2004 - 18:36 (Walter da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
UM CONTO SOBRE UMA AMARGA FLOR
“Quando estou, quando estou apaixonado,
tão fora de mim eu vivo
que nem sei se vivo ou morto
quando estou apaixonado”
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Q
uando reencontrei Margarida*, ela continuava branca, o rosto distante e o cabelo longo cor de fogo. Há muito não a via. O ventre à mostra, como uma adolescente, trazia marcas de queimaduras, de quem, inadvertidamente, esquecera de usar o avental. Mas estava bonita sob os olhos castanhos quase mel e uma charmosa forma de falar meio sibilante. É claro que olhei sua barriguinha bem acabada, aquele ar de menina rebelde, mas de quem vinha de um tempo difícil, quando lhe adoecera a filha de nove anos. Sua terna loquacidade me encantara. Seu corpo magro, quase esguio e seu jeito de cansaço, alarmara meu sentimento de querer saber dela, desde os tempos em que a conheci numa loja de conveniências, digitando os números de lucro do patrão. Apesar desse passado recente, onde amargara dias e noites num hospital, às voltas com um tumor no cérebro de sua filha, meu encantamento me arvorava a querer vê-la de novo, seu sorriso nos dentes pequeninos, aquele ar de quem carece de uma boa conversa. Depois desse preâmbulo e de ter me alegrado por revê-la, despedimo-nos à luz do convite que lhe fiz para ir à minha casa, num certo domingo de outono. A visita dos filhos e netos são um bem efêmero, mas inesquecível, pintando de cores mais vivas, a alegria dominical. O modesto almoço de feijoada, prendeu-me no sábado anterior para preparar a piéce-de-resistance para meus convivas, programa que me aumenta o ânimo de receber. No terraço em forma de “u”, de minha casa, conversávamos os amigos de sempre, a contar seus sonhos e pesadelos. Subitamente, alguém me chama ao portão. Era ela, Margarida, meio tímida mas aparentemente decidida a entrar, sentar e conversar. Aquela conversa durou bastante. O suficiente para que, gentil e talvez paciente, com a minha insistência, colocasse seus pezinhos 34 sobre minha perna. Aquele contato inicial, levemente erótico, aguçara-me a vontade de poder recebê-la. De perto, a fragrância do Carpe Diem que estava usando, dava-lhe um ar adolescente, encantador. Sua boca, bem marcada num carmim discreto, aumentava-me a esperança de reler essa mulher mignon, cuja magreza era um sinal de quem houvera sofrido ao longo desses meses. Paulatinamente, me contara todo o episódio que culminara com a cirurgia delicada em São Paulo. Ela viajara sozinha, sem o ex-marido, apenas com o apoio de alguns amigos e sua fé nem tão inabalável em Deus. Esse contato em meu terraço, talvez lhe tivesse deixado meio zonza, frustrada e curiosa para me conhecer um pouco mais, após ter ouvido meu insistente agnosticismo. O teor alcoólico me deixara mais arvorado e, por que não dizer, “amostrado e metido”, segundo suas próprias palavras. Ao ter assistido à sessão supostamente interpretativa do novo testamento, sob o olhar receptivo dos amigos, a conviva Margarida, fechou-se um pouco, em respeito ao anfitrião. Alguns dias mais tarde, tomei conhecimento, através dela mesma, que tivera ido à missa no fim daquela tarde, como uma forma de protesto silencioso às minhas idéias anti-clericais e como efeito flagrante de que essas idéias não lhe teriam tocado sequer um pouquinho.
Ela não bebeu um único gole. Estava tomando um ansiolítico, para amenizar a depressão que lhe acometera em seguida a essa prova contundente que fora a enfermidade da pequena filha. Comera pouco também, apesar de minha insistência. Ao final, fui deixá-la ao portão, quando, furtivamente, beijei-lhe a boca sensual, tão rapidamente que nem se dera conta direito. Algo ficara instalado dentro de mim naquela tarde de domingo outonal. Principalmente a mim, que há tempo não hospedara efemeramente uns pezinhos sensuais que pude beijar suavemente sob a surpresa dos amigos e o efeito etílico do momento. Margarida, essa flor aparecida, pele de alabastro, a quem tentei cuidar, regar e contemplar durante algum tempo. Foram alguns meses de contato, forró no mês de junho, uma sessão única de cinema, conversas na rede do terraço, alguns jantares com vinho e vela acesa. São recordações que trago imensamente: a troca de presentes no dia dos namorados, ao lado das crianças, seus filhos. O presente de pérola que lhe dei para usar na pequena orelha. Um sexo assustado, mas providencial. O fellatio que praticara, enlevando-me, apaixonando-me. Os beijos lancinantes que nos demos, os abraços calientes, na cama. A primeira interrupção cortara de modo abrupto nossa relação, no momento em que, provocado, enfureci-me a ponto de lhe causar medo e instabilidade. O amor, por vezes, coloca seus guerreiros irracionais a serviço de outrem. Passado quase um mês, nos reencontramos. A flor continuava a mesma e se comovera na cama me dizendo “eu te amo”. Mas eu já pressentira que o despetalar já começara amiúde. Sua cobrança tinha um preço alto, acima de minha posição no mercado do amor. Sua insegurança levava-a a proferir palavras duras, grosseiras até. E surgia um novo dado no problema: ela me dissera que não conseguia conviver com um caso anterior, mal resolvido. Novamente o passado insepultável. Durante esse retorno, convidei-a com seus filhos para um fim-de-semana em minha casa. Sua desconfiança, suas decisões pela metade, seu jogo escondido, não abalara o amor que alimentei durante esses meses. Sua adolescência tardia, sua insatisfação, não me demoviam de tentar de novo, de novo. E tentei. Mas tudo surtira inutilmente. Para minha tristeza, dissera, ainda na cama, que estava precisando de arranjar um namorado. Infantilmente e sob meu protesto de amante, reconhecera que se tratava de uma brincadeira de mau-gosto. Margarida, flor desses jardins inóspitos. Margarida, mulher contraditória, quase sem rumo, sem projeto de vida, sem consistência e coragem de prosseguir. Faz duas semanas não lhe tenho notícia. Não sinto sequer seu perfume imaginário a espalhar-se em meu quarto, ao longo do meu corpo. “Não acredito que você consiga me bancar”. Foram suas penúltimas palavras. Ela precisa mesmo de um mecenas, um homem que sustente uma idéia mal-concebida. Necessita de alguém que mostre seu caminho, ao qual não consegue enxergar, vislumbrar. Por vezes imagino que está meio perdida. Meu amor é insuficiente para redirecioná-la. Mas sou muito pouco para devolvê-la ao seu verdadeiro jardim: uma paz que só alcançará de dentro para fora, com ou sem fragrância, conduzida em sua própria fotossíntese.

* Daisy, na língua inglesa
_____________________________________________________
WALTER DA SILVA
Camaragibe, agosto de 2004..
(texto revisado e atualizado).
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