Envelhecida, dois anos após o suicídio do último dos amantes, completamente abandonada pela memória dos tempos áureos e corcovada sob o gorduroso peso da celulite que lhe tornou o corpo num cilindro, o seu olhar lacrimejante já não tinha qualquer indício da perversidade em que viveu quase toda a sua vida, mentindo aos outros e a si mesma.  Falava sozinha, demenciada pelo opróbrio em que abruptamente foi caindo, semi-cega, tacteando a borda do passeio com um pedaço de pau. Ali e acolá, inchada de esclerose, estendia a mão a quem passava, mas ninguém lhe ligava mais. Seu cheiro nauseabundo afugentava até os cães e os gatos que remexiam nas lixeiras da grande cidade.  Num recanto de um prédio abandonado, Tonho Ranhento, na desdita que ela tanta vez lhe desejara, abria a manta que o cobria e a Mileneta deitava-se a seu lado, aconchegada ao derradeiro pedacinho de humanidade que lhe restava no mundo. Sequer já tinha sensibilidade para se repugnar do ódio que em tempos votara ao optimista vagabundo.  Torre da Guia   |