Usina de Letras
Usina de Letras
234 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62073 )

Cartas ( 21333)

Contos (13257)

Cordel (10446)

Cronicas (22535)

Discursos (3237)

Ensaios - (10301)

Erótico (13562)

Frases (50480)

Humor (20016)

Infantil (5407)

Infanto Juvenil (4744)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140761)

Redação (3296)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6163)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O caminho de Francis -- 02/12/1999 - 17:05 (Andrey do Amaral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Publicado no livro "Todas as Gerações" (LGE Editora, 2006)

Francis saíra de casa ainda no início da madrugada. Por volta de 1:00h. Ele e Dorotéia. Caminhando com passos rápidos e sem destino, Francis – o morcego das noites – cumprimentava as prostitutas cordialmente com as quais encontrasse pelo caminho. Mas um cumprimento curto e seco: um simples “boa noite!” ou “tudo bem!”. Às vezes, apenas acenava com a cabeça ou levantava uma das mãos, dando um breve sorriso.

No breu dos becos da Cidade Baixa, o seu caminho era iluminado por letreiros de neon. Sua face enrugada pelo tempo ficara ainda mais fúnebre com o brilho azul das luminárias. Mas Francis gostava. O neon, ao alto, era como um sol, um sol que não cegava. Ao contrário, aquele sol azul (ou vermelho, ou verde) lumiava mais e mais os mistérios da vida noturna, da vida sofrida, da vida sem vida. O gueto era verdadeiramente um enigma o qual ninguém queria desvendar.

Todas as noites, durante sua caminhada, Francis sempre levava consigo balas. Ele as distribuía aos amigos com que encontrasse pela frente. Ele fora alcunhado de “Bala-perdida”. Até hoje não se sabe ao certo o porquê do apelido. Alguns dizem que era por causa dos doces os quais distribuía. No entanto, o apelido viera antes da distribuição das balas, um ritual recente. Outros ainda dizem que é por causa de suas andanças a esmo, por toda noite, sempre acompanhado de Dorotéia. Francis era sozinho. Sua única companheira, Dorotéia, era um revólver, ou melhor, uma pistola a qual ele roubara de um policial que fora morto nos incidentes da Cidade Baixa. Sempre diziam que toda vez que o “morcego das noites” saia de casa era o prenúncio de uma morte. Talvez lenda.

Francis vai caminhando e boceja, mas ele não tem sono. A noite era o seu dia. E durante todo o dia, a claridade das manhãs e tardes, Francis não saia de casa. Jamais.
Uma jovem meretriz, com a voz rouca, o interrompe:

-- Francis, entre aqui. Deixa eu te mostrar o que a vida tem pra te dar. Hoje eu desejo que você seja o meu primeiro homem, gostosão...

-- Primeiro ??? Primeiro como Madalena? – Francis perguntava com ironia.

-- É... quer dizer... o primeiro desta hora... Das duas horas da madruga...

Francis gargalhou, mas não aceitou o convite. Apenas agradeceu dando uma bala à prostituta, continuando a sua caminhada noturna.

-- E não jogue o papel no chão, hein?! – concluiu Francis ao se despedir. Ele sempre quisera ver aquele bairro limpo. Tentava instruir a todos para que cuidassem da cidade na qual moravam.

Francis já pensava em voltar para casa, ao seu ponto de partida. Porém, continuou. Com o mesmo ritmo, seguia sua trajetória. Ao sair de casa, ele esquecera um walkman que sempre levava consigo. “A cabeça fica ocupada”, assim pensava Francis. Sem o radinho, assobiava um sucesso do momento ou apenas assobiava, inventando suas próprias músicas. A noite ficava... não alegre... mas, sim, menos triste. A vida de Francis era triste, só que ninguém sabia. Ele camuflava bem aquela tristeza: alegria de palhaço. Francis dizia também que não queria ser feliz, pois sua grande felicidade era quando conseguia eliminar por alguns instantes aquela tristeza lancinante que o acompanhara desde a infância. E não gostaria de viver uma alegria eterna e falsa, pois certamente estaria vivendo na monotonia cruel da felicidade. Francis no país das maravilhas!

No caminho, mais prostitutas, mais balas e agora baratas. Francis ao entregar suas balas, pedia que elas não jogassem o papel no chão. Era atendido, pois todos o respeitavam bastante. Não um respeito temeroso, e sim admiração por ele. Sempre ajudava aos que o procurassem. O que não apagava a imagem esdrúxula de Francis, seu jeito estranho. Muitos pensavam que ele fosse o demônio ou algo parecido, sobrenatural. Os mais antigos do bairro afirmavam que ele tinha um pacto com o diabo.

No seu caminhar, de passos ligeiros, Francis cruza com algumas baratas pela sua frente. Ele pára. Atentamente, observa uma barata que vem ao seu encontro. Um forte asco arrepia-lhe o corpo. Francis levanta o pé a fim de exterminar aquele ser inferior e nojento. Ele, então, pensa que seria uma atitude inútil, pois ao olhar à sua volta, milhares de baratas surgiam do nada. Matar uma apenas não adiantaria. E para que matar aquela barata? Qual a necessidade das pessoas de matá-las? Por que esse pensamento voraz e aterrorizante?

A barata está imóvel e parece que espera estática e temerosa o seu fim. Com o olhar fixo nela, Francis desiste do extermínio. Inexplicavelmente, o asco de Francis transforma-se num forte sentimento de compaixão por ela. A piedade pelo inseto aumentava à medida que Francis descia o pé de encontro ao chão. A barata se vai. De súbito, some. Uma lágrima molha sua tez envelhecida. Seus olhos se fecham. Ao longe, está a barata. Parecia estar brincando, muito feliz. Era uma felizarda, pois não fazia mais parte da grande estatística das mortes das baratas. Quantas morrem por dia? Várias, milhões... e por quê? Só na Cidade Baixa havia uma quantidade assustadora. Os garotos da cidade diziam que pisar nas baratas era como pisar em folhas secas. “É muito divertido!” Era a diversão da garotada pobre da Cidade Baixa: correr atrás das baratas.

Caminhando e caminhando, Francis se sente um estranho naquele mundo: o mundo das baratas. O nojento e inferior agora era ele.

Na cidade Baixa, havia um lixão e talvez o número de baratas era infinitamente muito maior que a população de toda a Cidade. Urubus, ratos, moscas aumentavam ainda mais esse número. E Francis, a partir de agora, não fazia questão de diminuir a população ínfera com que todos tinham contato diariamente.

Mais à frente, Francis via uma barata brincando com um felino. O gato eriçava suas garras em cima do bichinho e, inutilmente, tentava ser mais veloz que o instinto de sobrevivência da barata. Tentativa vã, pois, com pequeninas pernas, ela volta vitoriosa à sua morada, deixando o gato em cima da tampa do bueiro, como quem faz uma encenação de mágica, sumindo de repente. O gato também se vai, não agüentando o forte cheiro do esgoto que subia-lhe pelas narinas. Francis, com a cena, ri.. Porém ainda meio às lágrimas, Francis encerra seu riso, torcendo pelo inseto. “Sorte dela!”, pensa Francis. Sua vida era muito diferente da do inseto. Ele agora sente nojo dele mesmo. E cospe no chão. Aquela saliva amarela tinha um terrível gosto em Francis. Ele chupa uma bala de hortelã a fim de amenizar tal gosto. Mas o gosto canceroso da purulenta saliva vinha da alma, do cerne de seu espírito, de seu inquietante pensamento.

Uma certa raiva domina-lhe a mente. Francis segura Dorotéia. Um pensamento suicida dialoga com ele. Mas, pensando na barata, Francis valoriza, pela primeira vez em 39 anos, a sua vida. E se ao pensar que havia uma certa inutilidade em matar as baratas, por que tiraria sua própria vida? Ele dispara Dorotéia. Pow... O tiro rasga o céu. A bala vaga sem rumo pelos céus da Cidade Baixa. E guarda a pistola na cintura como se fosse um xerife. O xerife da Cidade Baixa. “Que esta bala mate qualquer ordinário inescrupuloso deste mundo.”
Seguro de si, continua caminhando.

Ao longe, um bêbado deitado no chão balbuciava algumas palavras. Ele servia de abrigo às muitas baratas que percorriam todo o seu corpo. Sua baba, o líquido etílico impregnado à roupa e o forte cheiro de rum alimentavam os ortópteros que se amontoavam em cima do ébrio.
Incomodado, o bêbado ordena às baratas que se vão. Assistindo àquela cena a distância, Francis percebe que ele se enfurece com a desobediência das baratas. Ele tenta se levantar, mas o peso delas é grande perante à sua levitude alcoolizada.

O bêbado então puxa com a língua uma barata que pousara em sua boca. Movido por uma raiva inigualável, ele, com os poucos dentes que tinha, mordera violentamente o inseto, deixando-o aos pedaços dentro de sua boca. Depois de cuspir o primeiro ortóptero, o ébrio repete a matança. Com as mãos, ele apanha mais duas baratas e as mastiga satisfeito.
Após sentir-se vingado, o bêbado dorme.

Francis, aproximando-se dele, repensa na vida das baratas. “Por que matá-las? Que necessidade há para esse extermínio?”
Um sentimento de justiça ecoa em sua mente. Ele saca Dorotéia e, sem acordar o assassino, dá-lhe um tiro no meio da testa:

-- Filho da puta!... Pow – sai o primeiro tiro. Vou arrebentar teus córneos... pow... porra!... pow...porra – Francis, com Dorotéia, vinga a morte das baratas da Cidade Baixa.

Se a aparência do bêbado já era desagradável e asquerosa, agora, com o rosto todo furado, parecia um mostro. Estava irreconhecível. Mas quem se importava, ele era um ninguém.

Francis guarda a arma novamente na cintura e sentindo o seu próprio mau hálito, chupa outra bala de hortelã. Porém, uma apenas não seria suficiente para enganar-se com seu forte hálito de esgoto. Leva mais duas pequenas balas à boca e joga os papéis em cima do novo defunto da Cidade Baixa.

“O lixo na tua cara vai encobrir tua feiúra, escroto.” – pensava alto ao deixar aquele beco.

A seis passos do bêbado, saca a arma novamente e erra o alvo no qual havia mirado: os três papéis de bala que estavam na cabeça do bêbado. O sangue escorria por todo o corpo. Um rio escarlate se formava ao redor do corpo do indigente. Com todo aquele líquido vermelho, as baratas se dispersaram. Ele agora estava sozinho novamente. Sem baratas. Porém, não passado muito tempo, o ébrio, no fim da madrugada, ganha nova companhia: ratos. Terríveis roedores cheios de fome.
Francis se vai. Começa o retorno à sua morada.

No caminho de volta, nada era muito diferente. A única distinção entre o caminho da ida e o caminho da volta era que este, no final da noite, estava sempre mais vazio.

As poucas prostitutas que ainda trabalhavam pediam a Francis balas a fim de mudarem o gosto de suas bocas. Na verdade, elas queriam mesmo mudar o gosto de suas vidas. O que era impossível. Elas estavam acorrentadas por toda vida ao mundo sujo da prostituição. O “Bala-perdida” apenas se lamentava, não podia fazer muito por elas.

Já perto de sua casa, o vampiro das noites é tomado pelo sono. Bocejando, bocejando, bocejando. Ao entrar no seu barraco de alvenaria, esquece-se da cama e se joga no desconfortável sofá de sua pequena sala. Horas depois, no horário do jornal local, ele acorda e mecanicamente liga a tv. Não que fosse interessado em notícias, não tinha curiosidade alguma nas notícias e nas informações, Francis tinha uma forte tara pela apresentadora vespertina. “Ainda pego essa jornaleira.” Ingênuo, ele nem sabia a diferença entre jornalista e jornaleiro. Pobre Francis. Mas com tanta fixação no rosto da apresentadora, Francis se choca ao ouvir uma notícia anunciada por ela:

“Morre Júlia, uma menina de nove anos de idade vítima de uma bala perdida na madrugada de hoje.”

Caem lágrimas dos olhos de Francis. O “Bala-perdida” se entristece, chorando pela morte prematura da criança. Ele desliga a tv. Escuta o silêncio vazio de seu pensamento. Francis encosta a cabeça na almofada do sofá. Um barulhinho ao longe atrapalha o seu descanso. É uma barata que roça suas pernas num pequeno quadro preso à parede. Francis se irrita. Deitado, pega Dorotéia e mira em direção à barata. Ele levanta-se. Pensa na barata que poupara naquela madrugada. Ele atira na tela da televisão e, como o bêbado, apanha o inseto voador com a boca cuspindo-a viva pela janela de seu barraco. O ortóptero voa sem destino. Francis poupa a vida de outra barata.
Duas baratas vivas, duas pessoas mortas em menos de doze horas.

Cansado, Francis deita com Dorotéia em sua cama, tentando esquecer o que acontecera há poucas horas.

Lá pelas 23:00h , o vampiro das noites toma um banho a fim de sair novamente pelas ruas da Cidade Baixa. Ele limpa Dorotéia com uma flanela e sai para cumprir a sua rotina noturna. Saindo de casa, não esquece o seu outro companheiro noturno: o walkman.

Ao abrir a porta de sua casa, vê baratas. Baratas no chão, baratas voando e o imenso caminho sem fim da prostituição da Cidade Baixa.










Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui