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Cronicas-->Daniela -- 13/09/2003 - 19:55 (Anderson O. de Paula) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Mamãe dizia, a quem se interessasse ou não, que eu era o que se podia chamar de garoto exemplar, aos 11 anos, queridos e muito bem idos. Aliás, diz que exemplar sou até hoje, apesar de não ser mais garoto. Mania de mãe e nada mais; não era um menino de virtudes, nem tampouco o sou agora.

Entretanto, não sei se isso chega a ser um virtude, sempre levei jeito para escrever. Pesa-me a consciência assumir que era um dos alunos que tirava as melhores notas em redação, mas é verdade, impossível não assumir.

Se não fossem os escrúpulos, afirmaria que era o mais inteligente também. Portanto, por conta desses escrúpulos, ficarei calado, mas não posso mentir que não penso nada diferente, ou seja: não me restam dúvidas de que era o mais inteligente.

Percebeu como tais escrúpulos causaram um excelente efeito? E ainda por cima fizeram com que não tenha aversão a mim, pensando que sou a arrogància personificada.

Assim, desde então - e aquela que me pariu nunca soube - cobrava para aos tímidos escrever cartas de amor.

Quanto eu cobrava? Nada que passasse de um hot-dog, um sorvete, um refrigerante, ou uma mochila para guardar lanches às excursões, principalmente ao Play-Center.

Confesso também que teve uma época em que já não mais fazia trabalhos nem lições de casa. Eles diziam: "Cara, escreva uma carta para Cris". "Não vai dar, preciso fazer a lição". "Eu faço para você". "Ih, não sei não..."(era preciso forjar certo escrúpulo, dar uma de responsável, negar-me ao suborno até as últimas).

Mas fazia que estava pensando, demorava alguns segundos e topava. Lá ia eu escrever uma carta para Cris, ou para a Simone, e tantas outras. Desse jeito minha vida acadêmica, pelo menos da 4ª a 8ª série foi acontecendo.

Como todos, um dia fiquei apaixonado e, por coisas da idade, ou da própria paixão, parei de comer. Só pensava na Daniela, que não me dava a mínima. Era simplesmente linda. Sabe quando um bocejo movimenta a maxila num esforço para não abrir a boca?? Foi assim que a vi pela primeira vez. Após essa cena ela apenas sorriu e saiu sem dar margem para um "oi".
Magra, rostinho pálido que inspirava cuidados e carinhos. A beleza era tamanha que todo momento que a via era motivo para contemplação. Sempre havia algo novo, surpreendente... Ora o olhar, ora o sorriso (...) a forma que pendia a cabeça para trás de modo a desembaraçar os lisos cabelos antes atados pela presilha.

Onde você mora?, perguntei, semanas depois...

Por que você quer saber? Respondeu secamente, como se já estivesse farta de perguntas como aquelas.

Enrubrecido saí, sentido-me nu, olhando para o chão, como quem pede desculpas arrependido com todas virtudes que uma criança pode ter. Essa cena patética em que a leitora, possivelmente, encontrou alguma graça aconteceu numa sexta-feira.

Era o primeiro e bem dado "chega pra lá" da minha vida. Fiquei triste, com vontade de chorar. Porque ela tinha feito aquilo; por que alguém como ela, com aquela boca, aqueles olhos, aquele sorriso, podia agir assim?

A outra semana começava. Soube, por alguém, não me lembro quem, que ela estava doente e que não iria para escola naqueles dias.

Só pensava na ingrata. Já não conseguia escrever. A olivetti não mais fazia seus tóc, tóc, tóc. Mamãe era só preocupações. Foi apenas uma questão de tempo e perdi toda aquela freguesia que me encomendava as tais cartas. Tive de começar a fazer minhas lições - diga-se de passagem que era época do dia dos namorados, perdi vários pedidos.

Era estranho, só conseguia escrever para os outros, mas não para mim.

Uma semana se passou, já era sábado. Um daqueles primos chatos que todos têm insistiu para que com ele eu fosse jogar bola. Disse que não queria. A insistência continuo. Cedi.

Resultado: quebrei a perna, coisa grave. Fiquei enclausurado no quarto em pleno término de semestre; férias.

Foram as férias escolares mais sofridas. A Daniela já tinha se tornado uma maldição, não saia de mim.

Enquanto isso - só tive essa informação meses depois - Daniela perguntava às pessoas de minha sala sobre meu paradeiro. Tinha se arrependido de ter me tratado daquele jeito. Havia entendido que eu não era culpado da morte de seu cãozinho e que por isso ela não poderia descontar toda a bronca em mim. Disseram que queria ir à minha casa. Mas ninguém a quis levá-la. Filhos-da-mãe!! Não me deram, ou melhor, tiraram-me essa alegria.

Já era passados dois meses e nenhuma letra mais tinha sido escrita. O segundo semestre havia começado. O gesso me acompanhava às aulas. No pátio meus olhos eram só observação. Entretanto, não tinha conseguido avistá-la.

Perguntei a todos e acabei descobrindo que a menina de meus olhos tinha se mudado para o interior de São Paulo, Campinas.

Meu mundo naufragava, estava perdido. Não era marinheiro, na época acho que nem sabia direito o que era ser um marinheiro, mas tive a impressão de que a bússola da minha vida mostrava que eu estava à deriva. E pior: não poderia deter o curso da embarcação. Sofria.

Há abismos, amiga ou amigo leitor, cujo os olhos fazem questão de não os encararem, são altos e macabros, causam vertigens. Desse abismo recuei, sem forças.

Ao chegar em casa Dona Nice esperava-me com uma carta nas mãos. Era de Daniela, senti-me por segundos sendo transportado para o outro lado do abismo.

A carta dizia, vou resumir para não cansar sua paciência, e também para não ser ingrato, pois já deve estar só curiosidades para saber o final dessa história:

Oi,

"Descobri que gosta de escrever (...) alguém entregou-me uma carta que foi escrita por você?" Gostei muito, não de quem entregou, mas de quem escreveu.(...) Penso em você (...) Desculpe por ter sido chata quando tentou conversar comigo, acontece que eu estava muito triste pela morte de meu cãozinho de estimação. O nome dele era Lila, morreu atropelado por que esqueci o portão de casa aberto. Minha mãe brigou comigo. Tentei ir até a sua casa, mas não sabia onde você morava. Estou triste agora....(...) Estamos mudando para o interior e vou ter que sair da escola".

De volta ao abismo....

Oh! Amiga leitora, não reproduzo mais as linhas dessa carta porque me faltam forças, sem falar que acaba de me vir à mente que quando nos escavamos corremos o risco de trazer à superfície coisas que estavam nas profundezas de nossas almas... Não, não quero correr esse risco, prefiro contigo não compartilhar tal dor. Ora, cada um tem suas dores e essas são só minhas.

Ela nunca mais voltou. Enviei-lhes outras cartas, dezenas de cartas, mas em vão.

Dela ficou apenas aqueles olhos distantes, o rostinho pálido, lindo, e essa carta que no momento está em minhas mãos, um pouco amarelada e amassada pelo tempo.

O gesso foi retirado, voltei a escrever: tóc, tóc, tóc era a boa e velha olivetti mais uma vez incomodando o sono de meu pai. Hoje, quando faz frio posso sentir a cicatriz da minha perna, sinto uma ingrata dor.


AOP
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