CRÔNICA DO PEREGRINO
A CACHORRA DE NOME BONITO
“Azul da Cor do Mar” é o nome da rua. As crianças entardecem brincando. Inventam cirandas.São filhos da invasão, correm pelas ruas de uma vila que cresce.
As ruas têm nomes curiosos, como “Detalhes de Nós Dois” e “Chão de Giz”.
As crianças são Fabrício, Luana, Elaine, Angélica. O tempo, para elas, têm outro significado.A vida encontra nas brincadeiras a sua mais exata tradução.
De vez em quando carros passam, de vez em quando um motoqueiro.Gente que tem pressa.Alguns se sentem importantes sobre suas máquinas.
Cachorros são bobos. Correm atrás dos pneus, das rodas, ninguém entende essa atitude, própria dos caninos.
A cachorra de nome bonito corre atrás da roda da moto.O motoqueiro
não gosta.O latido do animal parece infernizar os seus ouvidos mais do que o ronco do motor.As crianças, alheias, desenham cantigas na tarde.
O motoqueiro está irritado, pára a moto, se abaixa, pega uma enorme pedra de concreto, mira ameaçadoramente na direção da pobre cachorra que debalde continua inocentemente ladrando.
A pedrada arranca o olho do animal que salta num esguicho. O sangue jorra, o enorme buraco vermelho enegrecido, o olho caindo na terra.
A cachorra correndo, desesperada, sem direção, as crianças, alvoroçadas na alma, param de brincar. O motoqueiro liga a máquina e continua a sua viagem. Na poeira desaparece o brilhante vulto da moto. Só dor e perplexidade permanecem na rua “Azul da Cor do Mar”. A tarde acabou. Piões e bonecas recolhidos.
Em algumas rádios o sertanejo puro, em outras a “Ave Maria”. O motoqueiro chega ao seu destino, à casa da namorada, que cega de amor o recebe de braços abertos.
A criançada se recolhe. Banho, janta e a conversa fatal: - mãe, sabe o que aconteceu hoje na rua Azul da Cor do Mar com a cachorra de nome bonito?
A noite é enluarada, o motoqueiro leva a namorada na moto. Após comerem uma pizza, trocam palavras de amor, frases confidenciais, segredos, juras.O motoqueiro é um rapaz bonito, a namorada está perdidamente apaixonada.
No outro dia as crianças vão para a escola, algumas acordam perguntando sobre a cachorra de nome bonito. Depois, no recreio, brincam.Ao entardecer a rua retorna ao colorido das vozes infantis, nos quintais o tempo baila nos varais, as mulheres preparam seus jantares.Na televisão o tempo é esmagado, a vida que se enervava vai se esfarelando em cada casa, em cada vontade distorcida, em cada história pessoal arrancada pela rotina.A menina Latoya, quase caindo de sono, desenha numa folha de sulfite uma cachorrinha, o silêncio da noite é esquartejado pelo barulho de uma moto.Latoya guarda os lápis de cor.
MARCIANO VASQUES
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