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Contos-->MEMÓRIA DA PELE -- 17/10/2004 - 10:53 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MEMÓRIA DA PELE

Conto de Antonio Miranda


Das axilas exalavam cheiro de sal envelhecido e de frutas passadas, talvez de garrafas esquecidas, um vago sentir de náuseas e arrepios. Na escuridão do espaço de paredes de pedras, na vastidão de imaginações soltas, naquele lugar de hospedagem, num percurso interrompido. Onde estava? Nem deu para reconhecer aquela estalagem no escuro, a velha conduzindo-o pelo corredor estreito e frio, com uma tocha iluminando precariamente o trajeto, trancando-o logo num aposento úmido em que havia um catre sem qualquer cobertura. Era o que havia, o cansaço era demais, os pés ardendo, o corpo machucado pelo fardo excessivo. Deixou-se cair enquanto ouvia gemidos e lamúrias vindos de algum lugar sem direção, ouvidos mas não bem identificados. A pele explodia de suor.

Estirado sobre tábuas rangentes, logo silenciadas pela inércia de seu abandono, de suas carnes imobilizadas, com a sensação de pesar muito além de seu próprio peso.

Um corpo a seu lado empurrou-o com alguma violência mas ele não reagiu, prostrado pela extrema fadiga, sem dar-se a qualquer raciocínio naquela condição de desmaiado. “Tanto faz”, teria inteligido no fundo de seu abismo dormente, enquanto mãos estranhas abriam sua camisa, quase arrancando-lhe os botões, alisando seu peito de músculos rijos e secos, moldado pelas lides mais árduas de sua existência.

As mãos que roçavam seus contornos eram como lixas, como areias ardentes, passavam um calor maior do que o que havia naquela noite quase sem ar, de ar estagnado. Outras mãos tiraram o cinto e abriram-lhe a braguilha e outras mais invadiram –lhe os pêlos alagados, alisavam com força as suas coxas, arrancando-lhe a calça, os sapatos empoeirados e as meias sujas, hediondas. Eram tantas mãos a levantá-lo no ar, a percorrer toda a sua frágil mas rija superfície, a deslizar por todas as suas reentrâncias: eram seios macios roçando seus testículos, eram dedos enroscando-se com os próprios cabelos, mãos calosas passando pelo pescoço, pelas nádegas, e havia também hálitos fétidos, salivas mornas e abraços sufocantes. Seu corpo era arrastado, subia e descia, puxavam-no de toda parte como se estivesse sendo devorado por ventosas de um polvo, visitado por inúmeras abelhas, sugando-lhe a seiva toda, mas de uma forma lenta, cada vez mais suave para atenuar a violência daqueles dentes em sua boca, aquelas línguas em seu anus, aqueles narizes aquilinos em sua nuca. Sentia-se sugado, eram bocas em suas extremidades, nos dedos do pé, nas orelhas, uma vagina roçando em suas narinas, um pênis flácido resvalando em seu dorso molhado.

Durante toda a noite sentiu que era possuído, que reagia a intervalos, como estertores, havia sido penetrado e chegara a orgasmos sucessivos, interrompidos pelas dores irreconhecíveis que vinham de todas as partes de seu corpo flagelado, entre prazeres e horrores. Acordava e sucumbia ao extremo cansaço, voltava a perceber a possessão de outras mãos, a fricção de outros corpos, vencido pela exaustão de suas forças, entre ejaculações próprias e estranhas, nas entranhas, entre sussurros e gritos, sem saber quando a tortura começara e quando o êxtase terminaria, desejando vencer a própria incapacidade de resistir. Ardores, delírios, suores, odores fatigados, pesos e pressões asfixiantes.

Até que as luzes começaram a entrar suavemente pela fresta de uma janela lá no alto do paredão, desde o catre em que jazia e fedia, dissipando aos poucos as densas penumbras de seu pesadelo, enquanto corpos desnudos iam esquivando-se e retirando-se silenciosamente na direção das trevas que habitavam.

O corpo prostrado, dolorido, arrasado pelo cansaço, apalpando sua pele viscosa, buscando descobrir o que restara daquele festim, daquela luxúria sufocante, querendo saber se ainda estava vivo, se ainda existia.

As luzes revelaram a sua extrema nudez sobre a superfície de madeira tosca, com um certo alívio. Com muita dificuldade conseguir levantar-se. Os músculos doíam mas não havia marcas ou vestígios do horror a que fora submetido. Resultou extremamente penoso vestir-se e com mais dificuldade ainda conseguiu abandonar a estalagem.

Durante anos, na solidão das noites em sua alcova, passou a ruminar e a percorrer a pele com os dedos, na tentativa atávica de recobrar a memória daquela fantasia de uma noite de verão.


Conto publicado originalmente no livro A SENHORA DIRETORA E OUTROS CONTOS. Brasília: Thesaurus Editora/FAC, 2003. 160 p.
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