... E COMO EU IA DIZENDO
“O mal da ficção é que faz sentido
demais: a realidade nunca faz
sentido.” ALDOUS HUXLEY
O sonho dessa noite foi como uma recidiva. Uma sala de aula
numa espécie de colégio ou similar. Havia muita gente. Muitos alunos, homens e mulheres. E ali estavas. Não te via os olhos claros, somente teu corpo e aquele antigo modo de sorrir com o maxilar superior desbragado. Era um sonho, produto do inconsciente, uma fantasia. Entretanto, ali estavas. Fazíamos um trabalho de grupo e eu te beijei, como da primeira vez, ao sabor de Beethoven, deves te lembrar. Um passado quase próximo, quase imperceptível. Há, num arquivo de minha memória, um registro de quando era (éramos?) feliz e pouco se me dava. Jogava ao lixo cada grão de felicidade que se me vinha. Era um tolo e também não sabia. Afora tudo que me dera insatisfação e disso bem o sabes, os bons momentos se assemelham a esse sonho dessa noite. Acordei desse sonho, feito um abestalhado e olhando pro teto nu do meu quarto. Por alguns segundos imaginara que poderia ter sido o real dentro do irreal. Tornara-se bem evidente, clarividente, que se tratava de um mero sonho, esses sonhos que a noite nos traz. Já eram quase cinco e meia da manhã quando fui ao gabinete rever a imagem de tuas mãos que lá depuseste, colada em meu braço e afixada ao quadro de fotos de minha coleção. Todavia, isso não era um sonho. Sou eu instalado em minhas vicissitudes e pregado em meu modo factual de ver o mundo. Hoje, um dia qualquer do mês de outubro, tive um sonho em que eras a principal personagem. E não te vi os olhos verdes que tanto amei, a boca que muito beijei lancinantemente, mas que hoje, em outro contexto, instalada em teus quarenta anos, numa terra distante e sob outro teto, pronuncia palavras num sotaque catarinês (e isso só te faz feliz), como se fosse mesmo uma dura realidade.
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WALTER DA SILVA
Camaragibe, 18 de outubro de 2004.
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