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Cronicas-->Crónica Para o Aniversário de Claudia Corrêa Bittencourt -- 16/10/2003 - 12:22 (Silas Correa Leite) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Sobrinha que todos têm como filha


Para Claudia Corrêa Bitencourt



Eu não me lembro exatamente o dia, mês ou ano, só sei que a história real era de que minha irmã Sueli que morava em São Paulo ficara viúva ainda no sétimo mês de gravidez, e, estando com problemas, estava voltando pra casa, trazendo depois filhinha que já nascera órfã de pai. O caçula em casa era o Célio Ely, morávamos na descalça rua de terrinha cor-de-rosa na Vila São Vicente, lá em Itararé, meu pai com seu acordeão vermelho em baladas de uma imaginação fora de série, minha santa mãe com sua voz de clarineta solando banzos davídicos no tanque de cimento armado, lavando roupa pra fora e tecendo as auroras dos filhos mijões e com amarelão, sempre dando trabalho, os gabirus.

Éramos felizes pois estávamos vivos e todos juntos, tínhamos um quintal encantado (que era a minha Terra do Nunca) e que dava árvores de pássaros-flores, entre pés de milho, mandorovás-camaleões, gafanhotos verdes e frutas doces; entre bananeiras que davam goiabas, fantasmas e ninhais, sonhos imberbes, e, claro, vez em quando o solo de uma vara de marmelo no meu lombo de espeloteado rapazote que amava os Beatles e Tonico e Tinoco, entre clandestinos gibis do Flecha Ligeira e carrinhos de rolimãs que eu inventava de inventar.

Um belo dia, e nem era Natal ou Primeiro de Abril, e chega aquela pequetita baby cor de mandioca descascada, como se uma estrela de luz a ornar nossas vidas, como se uma camélia branca cheia de encanto e ternura a nos dar o dínamo da simpatia, e ali, entre nós, na nossa modesta casa de tabuinhas, para sorte nossa, a menina que era um toquinho de doçura e afeto começou a nos chamar de tios. Claudia era o nome dela. E entre nós começou a reinar toda càndida, irmã-sobrinha de Célio e, com certeza, a adorável sobrinha que acabou sendo nossa sobrinha-filha.

Eu me lembro, eu me lembro...comecei a trabalhar no Bar do Calixtrato, na Praça Coronel Jordão, e todo santo dia trazia leite para o Célio e a Claudia. E quando saía ou chegava da labuta sofrida, ainda imberbe, o meu primeiro olhar, abraço, beijo, era deles. Por eles, sabe, valia a pena então tentar viver, batalhar de sol a sol, a vida tinha sentido e acreditávamos, sonhadores que éramos, em nossos sonhos loucos, mesmo que alguma nódoa de desesperança varria-nos aqui e ali de dor, de frustração, pois que éramos pobres, tínhamos uma vida humilde, mais a Erzita, eu e o Paulo de Tarso tínhamos o sentido da luta, da braveza, herança que trouxemos talvez do DNA de nossa mãe-coragem que, de sol a sol, teimava com brios entre o tanque e o fogão de cepilho e serragem, quando a comida era pouca, chorava seus banzos enluados, e Deus, na sua santa misericórdia transformava essas lágrimas de mãe em cebolas milagrosas, então ela fazia deliciosos omeletes estrelados para um monte de gente. E o destino da luta nos fez fortes, vencedores. Do pai com um talento acima da média, herdamos o dom de sobrevivermos longe de casa em tempos de cries, no amor e na dor costurando trilhas, recomeços, descaminhos e estrelas de tijolos amarelos que vão dar no sol.

E a Claudia foi criada entre nós. Foi a nossa benção. Uma sobrinha que brincava conosco entre nossos bois feitos de sabugos de milho; nossos bosques feitos de latas de sardinhas e caixas de Mate Leão, nossos carros feito de carretéis de linha e pedaços de compensados que eu trazia da Marcenaria Estrela onde fora aprendiz de marceneiro - e onde também pratiquei aprendizagens de poeta e mago, atrás de uma lenda pessoal, o sonho impossível de um poeta sem lenço e sem documento.

Um dia vim-me embora pra São Paulo, e a maior perda foi a minha mãe chorando no portão de madeira (entre flores silvestres cujas mudas eu pegava do Cemitério da Saudade), meu pai acenando confianças e expectativas de vitória saradas. Célio Ely perdendo o vínculo com o irmão mais triste (e ele herdou essa tristeza-cruz de mim), e Claudia no abraço mais demorado, numa torcida mais luz, num afeto mais epidérmico que ainda guardo comigo, pois dela herdei a vontade de ir sempre em frente apesar de tudo, sempre em busca, mesmo quando em frente não havia nada e a busca era o exílio, a paixão não permitida, ou a tristice pela carência e mixórdia da sopa de fubá com couve rasgada...

Dona Eugênia carregando a Claudinha de suas qualidades e defeitos. Seu Antenor vendo nos seus dois mais novos elos, Claudia e Célio, suas transferências de buscas e continuações, herdeiros de tentativas novas, esperanças limpas, trilhas e iluminuras. Um dia a Erzita foi-se embora, a Clarice também voou, nas sofrências nos perdemos um pouco de nós, eu trouxe o Paulo pra capital, moramos em pensões, passamos necessidades, e a doçura da Claudia ficou numa íntima pele mais doce da parede da memória. Era o nosso talismã. O pai vendeu a casa, o pai morreu, a mãe labutando aqui e ali na sobrevivência possível, sofrências e expectativas. E as orações de minha velhinha alongando lágrimas pelas intenções de seus filhos longe de casa, em terra de lobos, com bandeiras e ideais. O tempo cobrando. Conquistas e avessos. Boemias e desilusões, pois na verdade, tudo é uma fantasia, menos aqueles que amamos, pois, afinal, não há sensações no esquecimento e viver é isso mesmo, a busca de ser feliz, custe o que custar.

A Claudia estudou direitinho, ficou moça e veio pra São Paulo também. Novos elos. Com estudos, boa cabeça, idéias e aprendizados, começou a trabalhar, entrou num banco, teve essa coragem que nunca ousamos, fez carreira e também nos fez sempre nos orgulharmos dela. Ela é especial. A sobrinha-irmã-filha. Nunca nos deu problemas. Aliás, sempre dissemos entre nós que era mesmo a filha que todos nós queríamos ter. Graças a Deus. Seu Antenor teria adorado saber das conquistas dela. Dona Eugênia quando a abraça demoradamente, até nos faz ficar com um certo ciúme bom desse mimo de neta-filha. Claudia se formou. Claudia comprou apartamento. Claudia ajudou a mãe e, com sua ternura tão peculiar, nos ajudou a suportar outras perdas, problemas, tempestades, desertos.

Eu continuo simples, feio, velho, pobre e triste, algo calvo e obeso, mas, se me perguntarem os motivos porque eu nunca desisti numa tentativa radical, porque sempre fui teimoso como uma mula, com certeza foi pelas pessoas que amei, pessoas que eu não deveria frustrar nunca, ao contrário, dar testemunho de que, mesmo como a cana, pisado, amassado, ainda assim tenho que dar açúcar-poesia, ser o bobo da corte sem corte, o palhaço da festa, o garçom da santa ceia, e, claro, fiel entre os elos que me mantém vivo, preso ás minhas origens, fincado em minhas raízes e determinado, Claudia foi importante, e a Musa-Vítima Rosangela acabou segurando a barra do que me restei depois de tudo o que a vida me fez.

Hoje Claudia faz aniversário. Na primavera as flores são eternas. Mas uma pessoa como ela não faz anos simplesmente, Ela não envelhece; uma pessoa como ela é sempre como um bichinho de pelúcia saradinho e bem composto. Nós envelhecemos, perdemos cabelos, a barba ganha a neve do tempo, mas a Claudia que até nem cresceu direitinho na estética final, ainda parece a mesma menina adorável, a criança que sempre carregamos conosco, a filhinha que infelizmente não tive a sorte de ter, uma espécie jóia rara no diadema do Clã Corrêa Leite.

Desculpem, fiquei emocionado ao escrever essa crónica. Fui, temperado pelas relembranças, tropeçando em teclas murchas que truncavam nas mãos trêmulas. Lágrimas que vertiam memórias de quando éramos puros, doces, inocentes. Rios que trago dentro de mim inventam horizontes e afeições, pertencimentos. E a Claudia com certeza vai querer aprontar conosco, porque ela é peralta, é uma menina-moça sapeca que só vendo. Ainda assim, vai ter que descer dos tamancos do melhor dia de sua vida, pintar os cílios cor de jabuticaba, se embonitar ainda mais na sua vaidade de flor-fêmea, e ouvir esse corrido despojo de primavera de um tio cada dia mais aventureiro e proseador pela própria natureza e, entre todos nós festeiros, vai se sentir, perdoem, a própria estrela no presépio das bebemorações.

E com licença que agora eu vou tirar a saudade pra dançar.

Parabéns Claudinha, Felicidades, Longa Vida, Que Deus te abençoe.

-A bença sobrinha-filha.

De todos nós que te amamos tanto.


-0-

(Sampa, 14 de Setembro de 2003 - Série Álbum de Família)


Silas Corrêa Leite - www.itarare.com.br/silas.htm
E-mail: poesilas@terra.com.br
www.hotbook.com.br/rom01scl.htm







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