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Cronicas-->UM VIAJANTE DO TEMPO NUMA CIDADE SEM-MEMÓRIA E INJUSTA -- 18/10/2003 - 02:34 (Carlos Jatobá) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

UM VIAJANTE DO TEMPO NUMA CIDADE SEM-MEMÓRIA E INJUSTA*


por Carlos Jatobá


  
    Estou em pleno centro do Recife; mais precisamente no bairro de Santo António. Quando, em plena e curta rua do Fogo, lembro-me da bem próxima e singela Igreja do Rosário dos Pretos e para lá me dirijo. Cruzo a rua Estreita do Rosário e deparo-me, à esquina, com a tal igreja. Hoje, em frente a ela descortina-se - perpendicularmente - a rua Larga do Rosário, que vai desembocar na Pracinha.


A obra, de um barroco agreste, fora construída entre 1662 e 1667. Tivera um novo frontispício construído em 1777, pois, como hoje ocorre, estivera desmoronando. Diante de tal, sinto-me estar, como um nauta, transcendendo o tempo e o espaço. Subvertendo, de certa forma, a cronologia.


Pareço divisar, no átrio dos gentios, um negro banto - de nome cristão - Natalício de Jesus, em suas lides diárias. Fora capturado pelos "negreiros", nas costas africanas de Angola, lá pelos 1590. Chamava-se, na verdade, Narih Fiba, contava 7 anos de idade e tinha sido vendido, no mercado de escravos de Olinda, para seu primeiro senhor.


Cá estou eu, diante da igreja, na qualidade de Capitão-das-Milícias e comandante do patrulhamento da guarnição militar da freguesia de Santo António.


Apeio da montaria, ensarilho a clavina, bato o dólmã, ajeito as dragonas, limpo os borzeguins e saco do "três-bicos". Adentro ao lugar. O preto velho alegra-se ao me ver. Traz-lhe reminiscências agradáveis, apesar de sua condição, da vida que tinha levado em nosso Engenho. Fora nosso escravo doméstico por muitos anos e, depois, cedido à uma ordem religiosa responsável pela construção de templos. De ofício, é um pedreiro do mais alto grau.


Está bastante alquebrado pelos anos e sofrimentos de uma vida cativa; porém, é livre de preconceitos, pensamentos e sentimentos e, ainda, é de bons costumes. Parece-me estar vivendo a apoteose de sua existência.


Segura firmemente o ostensório com uma mão e o cajado com a outra. Usa um avental branco de pelica e, pendurado por uma espécie de alfaia em torno do pescoço, um esquadro de medição. Próximo a ele, uma trolha, um compasso, um nível e um prumo.


Dá-me um vigoroso abraço e repete-o por mais duas vezes. Curiosamente, num português castiço e inteligível, retruca-me: - Surpreso, meu filho! Hoje, expresso-me tão bem como vossa mercê! Devorei parte da biblioteca do monastério de minha Ordem. Pelas cãs e o conhecimento que adquiri; fui designado mestre desta obra. Se salário tivesse, diria que fui regiamente aumentado.


Pai Natalício, com ar professoral, começou a dissertar-me sobre a construção da igreja, dizendo-me: - Para as construções renascentistas ou barrocas, vinham da Metrópole; além dos arquitetos e alveneres, os modelos, os materiais e até mesmo os artesãos, pedreiros, carpinteiros, cavoqueiros e oficiais de outros ofícios para cá. Contudo, a partir do presente século XVII, a mão-de-obra empregada é, não só indígena ou mestiça; mas, sobretudo, negra e principalmente mulata. Influenciamos, sobremaneira, a arquitetura e a ornamentação interna e externa desta igreja. Também, nas imagens dos "santeiros", pinturas e afrescos; há uma contribuição ímpar à arte e à beleza. Quase todos nós, os importantes e desconhecidos, artistas desta época colonial somos negros, mulatos ou temos a chamada "infàmia do mulato" no sangue. Esta, por exemplo, foi construída com o suor dos que aqui se esgotaram na extensa faina diária; com as lágrimas dos que mesmo acometidos das "febres", tinham que produzir e; com o sangue dos que aqui pereceram em pleno uso do escopo e do cinzel.


Ouço, encanto-me e emociono-me com seus ensinamentos. Pelos ornamentos em volta, dei-me por conta que estávamos, pois, em 23 de junho de 1666 nos preparativos das festas solsticiais de São João e, também, para a visita do Governador-Geral do Brasil: Vasco de Mascarenhas, o Conde de Óbidos.


Nisso, saio desse "transe" inominável ao ser interrompido por um casal de turistas, no qual o homem me pergunta: - Excuse me, Sir! Do you speak English? Respondo-lhe: - Yes, can I help you? A partir dai, pergunta-me sobre outras igrejas e, principalmente, a "Capela Dourada" da rua do Imperador, em contraste a esta em que ora estamos. Após, despede-se, obsequiando-me com um cartão: John B. Mason, architect. 1033, 7th Ave. New York, N.Y. e convida-me para visitá-lo. Em seguida, sigo com destino ao "Marco Zero" no Recife antigo, após a ponte Maurício de Nassau.


Só aí chego à realidade. Estou em 2003. O velho obreiro escravo Natalício de Jesus, talvez exista somente na minha criação. E, sobre esta criação; o manto diáfano da ficção. Mas, a obra barroco-religiosa deixada, por tantos pedreiros iguais a ele, está hoje ao abandono. Isso faz parte da História.


Mais uma vez intuo que, em nossa cidade, ao alargarmos ruas podemos estar estreitando mentes. Somos pobres na preservação da memória histórica; mas, ricos na assimilação da dita virtual.


Sigo meu caminho. Já em pleno "Marco" colorido, vazio e nostálgico; dou fé de um "homem-sanduíche" que traz a seguinte mensagem: "Compra-se Ouro Velho". Mofo diante de tamanha ironia comercial. Mas, entristeço-me diante da pessoa que se emoldura de outdoor ambulante: um velho homem que faz-me lembrar o Natalício. Pergunto-lhe então: - Meu bom homem, você ainda precisa trabalhar para se manter? Responde-me ele, prontamente: - Patrão!... Sou fruto da previdência oficial!...


 


*Crónica do autor publicada na FOLHA DE PERNAMBUCO,


Recife-PE., em 12/10/2003, Caderno de Economia, página 4.


 

 

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