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cronicas-->O Homem é o homem -- 26/10/2003 - 01:04 (Carlos Eduardo Canhameiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Homem é o Homem

Carlos Canhameiro

Mãos dadas, passos descompassados, caminham como já fizeram incontáveis vezes, mas desta vez, sabem exatamente onde devem parar. Ela, calada, fria, contorcendo-se internamente com a impossibilidade de detê-lo, de gritar um simples e necessário "não vá". Ele, sorrindo sem graça, disfarçando o que não estava certo, preso entre o ontem e o hoje, louco para correr e deixá-la sem satisfações maiores, como já fizera antes quando partiu pela primeira vez. Descem a escada rolante, luxo das cidades e aos poucos se aproximam da plataforma sete.
O abraço sem jeito na porta do ónibus, a tentativa das aparências adultas serem preservadas, o contato breve dos lábios rijos selando o fim para um novo começo. Ele graceja algo sobre o adeus as despedidas para amenizar a situação. O roncar do ónibus anunciando o inevitável. O motorista faz o último chamado, a bota sobe os degraus lentamente. Ela, da janela, é capaz de vê-lo, desajeitado, procurando o número do assento: a velha dificuldade de leitura; ela sorri... Ele encontra a poltrona: janela. Sorri porque sabe que aprendeu o significado da escrita com ela. Senta, respira fundo, sabe que ela o observa com os olhos marejados. Num impulso, levanta-se, vira-se e a olha. Ela, como uma vela teimosa que não se apaga ao ser soprada, sente a esperança reacender e sorri, incerta. Ele apóia uma mão no vidro, baixa os olhos sem saber o que fazer com o que sente. O ónibus começa a se movimentar, ele permanece imóvel. Ela, apagada, começa o parir das lágrimas.
Olhos vermelhos, úmidos. Uma mão inquieta tentando conter a vazão. O representar de uma discrição humilhante para conter os olhares curiosos. Ela se deixa escorrer pelos largos corredores da rodoviária, num passo único, lamentando pelo homem ser errante. Lamentando ainda mais por ser uma mulher fraca. Por desejar um homem. Por se entregar a um homem porque cheira a homem. Ela, a Manu, a urbana dos metrós e ónibus lotados, estava apaixonada por ele, o Mauro, o vaqueiro das terras secas e desalmadas, que voltou de mala na mão. Manu ainda lacrimeja. Caminha devagar, em contraponto aos demais que transitavam com pressa, exceto os que - por razões do tempo, seja pela espera, seja pela idade - estão sentados. Pergunta se seria possível evitar as tragédias diárias. Estavam numa harmonia invejosa dois dias antes... Instintos ainda seriam motores que impulsionam o homem para trás e para frente?, como poderia saber? Por que não gritou? Por que preservou a educação materna e não se entregou a um escàndalo? Soluça alto, se envergonha. Ela, mulher, sofrendo por um homem que partiu. Por que aceitou a submissão e se calou? Envenenaria sua mente com essas questões por muito tempo ainda, tempo que a envelheceria sem piedade.

Ele sua. O ónibus parou onde ainda se via resquício de civilização, o resto é com as próprias pernas. O sol riscando o horizonte, distante e imortal. O tremular da visão devido ao calor. A poeira seca, rasteira e impregnante. O silêncio dos pássaros, da ausência do vento, desfeito pelo contato da bota com a terra batida cheia de pedregulhos. Lá está o homem que vai, pedaço do homem que veio. Sabe Deus se ele volta ou vai... Sabe Deus se deus sabe alguma coisa. Caminha, mala na mão, caminha. Se volta, volta para alguém que deixou um dia. Se vai, também deixa alguém quando vai. São os dois lados de quem parte.
Está ofegante, desacostumado ao sol forte, à caminhada longínqua. Não trabalhou menos desde que partiu, mas se acostumou aos malefícios da cidade e, mesmo não sendo filho dela, se habitou a chamá-la de mãe. Agora regressa, mais egresso do que quando partiu. O boi magro, do lado direito da estrada, mascando capim seco, deixando a baba escorrer por entres as folhas o faz lembrar que esse é o seu mundo, pelo menos o mundo que faz sentido ou que é capaz de fazê-lo sentir ou de fazê-lo se esquecer. Pára, vira-se para a rés e a encara de frente. Começa a arquejar, perde-se em descontrole e arremessa a mala em direção ao boi. A mala se arrebenta com o arame farpado da cerca, roupas se espalham pelo capim e o animal continua impávido. Mauro cai de joelhos, com as mãos sobre os cabelos encaracolados, grita num desespero de fazer acordar os deuses. O boi se deita em reverência. O som ecoa pela planície infinita e se perde. Nunca haverá alguém interessado em recuperá-lo. Mauro chora, escondido pela vastidão, chora como nunca fizera antes. Um mugido alto rompe o silêncio, e o boi se revela vaca. Ela mugi ainda mais uma vez anunciando que o vaqueiro está de volta e que, tão certo quanto ela é uma vaca, ele é um homem.
Ele se levanta e caminha em direção ao animal. Pula o que resta da cerca e pára a parcos centímetros da cabeça chifruda. Ainda chora, mas não mais desesperado. Esboça um sorriso, abaixa e se vê refletido nos grandes olhos negros da vaca. Vê-se como ela o vê. Fica assim por algum tempo, agora sorri satisfeito. Abraça o pescoço do animal e se deita ao seu lado, olha para o céu e se cega temporariamente pelo brilho do sol forte. A vaca levanta e caminha para onde não se sabe, ele permanece estendido no chão. Está de volta. Só não sabe ainda se sabe voltar.
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