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Contos-->GATO PRETO -- 03/01/2005 - 13:33 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
GATO PRETO

O café extremamente quente faz com que os olhos de Fernando marejem a cada tentativa de sorver o líquido sem açúcar. Isso sempre acontece quando perde a hora e tem que tomar seu desjejum às pressas, entre as manchetes políticas que não consegue ler e um ou outro bocejo.
Naquela manhã conseguira superar seu recorde anterior e tinha apenas cinco minutos para deixar as crianças na escola e chegar ao escritório. Ou para bolar uma boa desculpa para chegar, de novo, após o início do expediente. O diretor, com probabilidade matemática, estaria à porta esperando-o, entre contrações da mandíbula que faria um buldogue ter complexo de inferioridade e o arquejar das narinas bovinas, que tremiam com ou sem capas vermelhas. Havia ocasiões em que Fernando, inconscientemente, procurava colocar pelo menos uma escrivaninha entre ele e o chefe quando sofria uma reprimenda, pois temia ser levantado pelo pescoço ou coisa semelhante.
Tomando coragem e o café quente ao mesmo tempo, Fernando decidiu-se pela primeira opção. Até porque seu estoque de quase-verdades estava cada vez menor. Já fizera a mulher, o pai, a mãe e a sogra adoecerem, uns de complicações cardíacas, outros de mau súbito. Além disso, não podia matar duas vezes o sogro que, inclusive, fôra visto no bingo pelo chefe de Fernando. Duas semanas após ter sido enterrado em uma cerimônia comovente, na qual Fernando se emocionara.
Pegando do paletó e da maleta, Fernando ajeitou rapidamente o nó da gravata, ao mesmo tempo em que gritava para os fundos da casa:
- Já estou indo!
Segundos depois, uma menina de 7 ou 8 anos aparecia esbaforida pelo corredor, tentando colocar a mochila jeans nas costas, seguida por um garotinho de não mais que 5 anos, com os cabelos e as roupas em desalinho.
Atrás das crianças, uma mulher jovem e bonita tentava pentear, sem muito sucesso, os espinhentos cabelos do menino, ao mesmo em que recomendava à menina:
- Arrume já esta calça, Maria Luíza. Aonde já se viu uma criança da sua idade querer andar com calça de cintura baixa?!
A garota não pareceu dar muita atenção à mãe e seguiu para a porta, enquanto Fernando, exasperado com a demora, bradava:
- Vamos embora de uma vez! O André acaba de se pentear na escola.
Galgou em poucos passos o espaço que o separava da porta da frente seguido pela família. A mulher, porém, correu alguns metros e ultrapassou os filhos, chamando por Fernando. Quando este se virou com um “O que é?” irritado, ela disse, baixinho:
- Nada. Só queria dizer que te amo.
O rosto tenso de Fernando relaxou. Aproximando-se da mulher, beijou-a de leve nos lábios, passando a mão livre em seus cabelos, num gesto carinhoso.
- Briguento! (A voz da mulher era suave, acolhedora)
- Grudenta! (Fernando riu)
Voltando-se, Fernando passou rapidamente pela calçada cercada de flores domésticas e por um pequeno trecho de uma grama miúda, chegando ao portão, que segurou até os filhos passarem, fechando-o em seguida.
Morava a apenas 6 quadras da empresa e ia a pé todos os dias para o trabalho, deixando o carro com sua esposa para as compras, as sempiternas visitas ao cabeleireiro e outras pequenas coisas que preenchiam os dias felizes de Márcia.
Após deixar as crianças na escolinha do bairro, Fernando tomou a direção da empresa, consultando o relógio em intervalos cada menores. Ao mesmo tempo, olhava repetidamente para a frente, tentando divisar a figura rotunda do diretor em frente ao prédio, mas sem resultados. Ainda estava muito distante.
Os passos céleres de Fernando, porém, estacaram abruptamente pouco antes de chegar à esquina, enquanto seus olhos fixavam-se em um gato preto que cruzava a calçada exatamente à sua frente. A pressa que o impelira até então, o temor de encontrar o chefe à sua espera, tudo deu lugar a um estado de paralisia, que plantou Fernando na calçada. Suas pupilas dilatadas perseguiram o trote ligeiro do gato até vê-lo sumir do outro lado da rua.
“Meu Deus! Vai me acontecer alguma desgraça!”
O pensamento ocorreu tão rápido a Fernando quanto o surgimento do gato em seu caminho. Era algo praticamente automático. Por mais que se esforçasse em não ligar importância a fatos dessa natureza, Fernando sempre ficava impressionado com esses sinais. Não conseguia permanecer indiferente se visse um chinelo com as correias para baixo ou uma tesoura aberta em cruz. Carregava sempre consigo uma figa, um trevo de quatro folhas e um punhado de sal, que atirava por cima do ombro esquerdo quando sentia maus fluídos em alguma situação ou pessoa.
Não sabia ao certo de onde vinham esses temores absurdos, essas crenças que ele próprio considerava estúpidas, descabidas. Talvez suas idiossincrasias tivessem se originado na infância passada no interior, entre bolos de fubá e histórias de assombração. Talvez fosse supersticioso porque o pai e a mãe também eram.
O fato é que, mesmo tentando racionalizar, ridicularizar e até afetar descrença quanto aos seus temores em público, Fernando alimentava por tais coisas a mais arraigada credulidade.
Assim, nem mesmo a cara de buldogue do diretor ou a necessidade de concluir as tarefas que não pudera finalizar no dia anterior, foram suficientes para fazê-lo seguir em frente. Em pânico, voltou sobre seus passos e, curiosamente, andava ainda mais rapidamente do que na ida, com a expressão receosa de quem teme sofrer algum mal.
Chegou em casa no momento em que Márcia se preparava para ir ao supermercado e já fechava a porta pelo lado de fora. A mulher ficou totalmente surpresa com sua chegada inesperada:
- Ué! Por que já está de volta?
Fernando, só então, se deu conta de que não dispunha de um motivo plausível para explicar seu comportamento. Não podia, sem mais nem menos, dizer que voltara apenas porque vira um digno representante da família dos felinos em seu passeio matinal. Balbuciou uma desculpa qualquer.
- É que eu...os documentos... Tenho que pegar uns documentos e levar pro escritório.
Márcia olhou com estranheza para o marido. Era ela quem arrumava sua valise todas as manhãs e jamais esquecera qualquer dos papéis ou materiais que o marido costumava levar. Mas intuiu que era melhor não insistir no assunto, por enquanto, e tornando a abrir a porta, deixou Fernando entrar em casa e seguir direto para a biblioteca.
Márcia permaneceu parada na sala de estar, um tanto perplexa, enquanto Fernando se trancava junto às diversas coleções de livros, ricamente encadernados, que eram seu orgulho. Sentia que a volta de Fernando não havia sido provocada por um motivo banal. Esperou alguns segundos, depois dirigiu-se silenciosamente até a porta, entreabriando uma pequena fresta.
Fernando estava sentado de costas para a porta e não percebeu sua mulher a olha-lo. Apertava os dedos de uma mão com os dedos da outra, enquanto seus pensamentos pululavam, desencontrados. Ora xingava-se mentalmente por ser tão idiota a ponto de acreditar nessas tolices, ora rememorava, angustiado, as histórias de mau-olhado, de má sorte e do mundo sobrenatural que conhecia. Sentia-se meio irritado, meio ridículo com suas atitudes, mas, ao mesmo tempo, sabia que seus temores eram mais poderosos do que ele e sua força de vontade juntos. E sofria por isso.
A mulher, depois de alguns momentos, sentiu que podia e mesmo devia entrar na biblioteca. Assim o fez. Fernando, quando notou a presença da esposa, desviou os olhos, com o rosto vermelho.
Márcia esperou alguns instantes, antes de perguntar, em voz baixa:
- Algum problema?
Fernando não respondeu imediatamente. Na verdade não sabia nem mesmo como fazê-lo. Limitou-se a abaixar os olhos para os livros que estavam sobre a mesa de leitura, pigarreando.
- Não gostaria de falar sobre isso?
A voz de Márcia era suave, acariciante, fazendo Fernando erguer os olhos e fixá-los no rosto agradável. Decidiu-se a falar. Ser idiota não era crime, afinal.
- Acho que você vai me achar um completo imbecil...
Fernando começou, titubeante.
- Eu... eu estava indo para o trabalho e vi um gato preto cruzar meu caminho. Você sabe... – Ele riu amarelo – dizem que traz azar... que a gente pode morrer se ver um logo pela manhã...
Fernando, ao dizer isso, evitava olhar sua mulher de frente. Assim, não nota que ela teve um breve riso, divertida.
Márcia, porém, já sabia o quanto o marido era suscetível em tais assuntos. Sabia também que as sogras, devidamente amaciadas, podem ser uma excelente fonte de informações sobre seus rebentos. Supersticiosos ou não. Limitou-se, pois, a ouvir as explicações hesitantes.
Depois que Fernando terminara sua arenga envergonhada, ela esperou alguns instantes antes de dizer, imperativamente:
- Eu concordo com você. Acho, sinceramente, que tem razão.
Fernando surpreendeu-se com o tom positivo da esposa e mais ainda com o que ela dissera.
- Concorda?
O tom de voz traía a incredulidade de Fernando.
- Claro que sim. Se você realmente acredita que isso vai lhe fazer mal e que não deve enfrentar esse tipo de coisa, acho perfeitamente natural que desista de ir ao trabalho. Aliás, você deveria ter muito cuidado, pois todos os dias algo de ruim pode acontecer. As crianças, por exemplo, deixam chinelos virados pra baixo o tempo todo. Na rua, diariamente, tem um monte de gente trabalhando com escadas encostadas na parede e por aí vai...
Fernando ouviu a mulher em silêncio, se dando conta, a seu pesar, do quão patético estava sendo. Não se animou sequer a responder.
Márcia, nesse meio tempo, se aproximou e sentando-se no braço da poltrona em que estava o marido, passou a acariciar seus cabelos, ternamente.
- Eu sei o quanto deve ser difícil pra você se livrar desse tipo de medo, mas, se for levar em consideração tudo isso vai acabar morando dentro de uma redoma de vidro, querido. Olha só: segundo um artigo que eu li na semana passada em uma revista científica, existem no Brasil cerca de 30 milhões de gatos. Desses, pelo menos uns 3 milhões devem ser totalmente pretos, segundo as estatísticas. Pois bem, se cada gato preto, durante toda a sua vida, passar na frente de, digamos, 30 pessoas, em poucos anos 90 milhões de pessoas morreriam ou sofreriam uma desgraça, certo?
Ela estava mentindo. Mas sabia o quanto o marido respeitava esse tipo de argumento.
Fernando apenas olhava para a mulher, encabulado.
- Bom, agora vamos tomar o caso dos pintores de parede, como exemplo. Cada um deles, provavelmente, já deve ter passado embaixo de uma escada algumas centenas de vezes na vida, concorda? Nesse caso, temos duas hipóteses: ou existe reencarnação e esses pintores já morreram e reencarnaram dezenas de vezes ou então...
Aqui Fernando não pode mais ficar calado, reconhecendo, desamparado:
- Ok, ok. Eu sei que sou um idiota, mas isso é mais forte do que eu. Juro.
Márcia o beijou na testa, antes de responder.
- Tudo bem, calma. Não estou dizendo que você deve deixar de acreditar nessas coisas de uma hora pra outra. Apenas que deve enfrentá-las. Que tal se você combinasse com você mesmo que, quando vir um gato preto, lembrará que também já viu um gato branco? Uma coisa não anula a outra?
Ainda envergonhado do seu comportamento, Fernando resmungou um “É” meio arrastado, mas não muito convencido.
- Isso vale também pros chinelos virados. Se eles trazem azar, chinelos virados para o lado correto devem trazer sorte, certo?
Visivelmente constrangido e querendo fazer parecer que seu comportamento fôra apenas momentâneo, Fernando aquiesceu:
- É. Acho que você tem razão.
Márcia sorriu de uma forma agradável e o beijou mais uma vez, agora nos lábios, antes de ordenar, brincalhona.
- Então, fora daqui ou você vai ver o que é má sorte de verdade quando encontrar teu chefe.
Fernando se levantou rapidamente da poltrona e, tornando a pegar a valise, se dirigiu para a porta da biblioteca.
- Nem me fale. Já vou. Valeu pela força.
Saindo novamente pela porta, Fernando pensava, mau grado seu, o quanto se pode ser ingênuo e extravagante nas próprias crenças, adotando comportamentos e posturas baseados apenas em fantasmas mentais.
Ainda não estava muito convencido quanto ao poder dos gatos brancos em anular o azar trazido por seus colegas de piche, mas tinha que reconhecer que isso fazia algum sentido. Se é que havia algum sentido em tais coisas.
Mais apressado do que antes, Fernando não pode deixar de rir levemente ao lembrar-se do silogismo segundo o qual se vassoura fosse transporte de bruxa, nem a Madre Tereza escapava da fogueira. Se bem que, no caso de sua sogra, o rapaz pensava, divertido, até mesmo esse utensílio seria dispensável.
Ainda estava rindo, distraído, quando começou a atravessar a rua e foi surpreendido pelo forte ruído de pneus fritando no asfalto, um segundo antes de ser violentamente colhido por um caminhão boiadeiro que descia a avenida em alta velocidade.
Completamente esmagado pelas rodas do veículo, Fernando não teve tempo nem mesmo de gritar, muito menos de ver o letreiro desenhado em tipos garrafais na lateral da enorme carroceria: Fazenda Gato Preto.
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