Seu Márcio entrou em coma em 1988. Um derrame fulminante tirou os sentidos do velho. Só na semana passada é que póde, enfim, ter a consciência de volta. A primeira pessoa que viu foi um jovem branco, magricela, de cabelos espetados. Quem será esse fulano? - pensou. O rosto parecia familiar, não sabia de onde. Enfermeiro não podia ser. Era muito moço. Além do mais vestia uma roupa mais parecida com a de um astronauta do que de alguém que trabalha num hospital. Continuou com os olhos azuis fixos no garotão. Ainda não conseguia falar. Parecia que a língua tinha atrofiado. Insistiu com a memória. Nada.
- Vovó, está me ouvindo? - disse o rapaz.
Vovó?! Como podia ser? Foi ali que se mancou que o tempo em que permaneceu vegetando não poderia ser medido em semanas ou meses. Avistou a filha do meio, que era a mãe do menino. Será que a insolente se casou sem sua autorização? Era provável. Só depois de meses é que ficou sabendo que a filha havia feito uma tal de produção independente. Foi duro entrar em sua cabeça que tinha um neto mas não tinha um genro. Inseminação artificial não era, com certeza, um termo que conhecesse. Passada uma semana, memória parcialmente reavivada, recebeu a visita do compadre João. Recuperara o dom divino da palavra e só confiava no grande amigo para tomar conhecimento das coisas que se passaram enquanto esteve ausente.
- O Santos foi campeão? - foi a primeira coisa que quis saber.
- Só da Rio-São Paulo.
- Mas isso não tinha acabado? Já sei, já sei...
- Quem é o presidente?
- Fernando Henrique Cardoso.
- O sociólogo?
- Ele mesmo. Está cumprindo o segundo mandato.
- Essa não... Ganhamos a Copa de 90?
- Perdemos. Mas faturamos a de 94. Sabe quem foi o capitão?
- É claro que não sei. Vai me dizer que o Zico disputou mais uma...
- Não. Se aposentou. Foi o Dunga.
Difícil para o seu Márcio entender que não era um dos sete anões. Mas fazer o quê? Foi bombardeando o João com perguntas de todo gênero. Ao ouvir as respostas, ora se espantava ora fazia uma cara de quem acertara uma profecia. Eu tinha certeza que o Maluf ia ser prefeito de novo! - comentou, triunfante.
- Mas me diga mais... Quero saber do presente. Aquele seu filho, o Roberto, ainda trabalha no banco? Aposto que já é gerente!
- Não, nada disso. Tem uma empresa de Internet.
- Que diabo é isso?
- É a rede mundial de computadores. É, meu amigo, agora as maquininhas estão todas conectadas umas as outras.
- Não pode ser... Desta vez os robós tomarão conta do Universo!
- Sabe quem está liderando as Olimpíadas 2000? - desafiou o João.
- Estados Unidos!
- Acertou. E em segundo?
- União Soviética.
- Errou! Não existe mais União Soviética.
Seu Márcio esbugalhou os olhos. Isto já era demais. Depois dessa, era bem provável que a capital do país tivesse mudado! E dá-lhe explicações sobre o Muro de Berlim, Gorbatchev, Bóris Yeltsin e Guerra do Golfo! Havia muito ainda para o moribundo, sempre catedrático, se atualizar. Teve um momento em que o celular do Seu João tocou.
- Vai me dizer que isso aí é um telefone?
- Acertou outra vez. Não dependemos mais dos fios! Nem da Telesp!
- Essa não! Venderam o país?
- Tenho de ir, Márcio. A patroa está me esperando.