A galinácea estava também ciente de que daqueles momentos em diante deveria cuidar da auto-estima. Achava que agora as doenças apareceriam, causadas menos pela falta de informação do que pela subnutrição crônica. Na verdade, aquela amargura que a dominava, por ter sido alvo da vigilância esmerada dos fiscais, punha-a mais doente ainda. Seu rabo já não tinha a exuberância dos velhos tempos. O leque e o verde da plumagem estavam meio que mortiços. Mas não deixava de ciscar no galinheiro, estando presente em todos os momentos, mesmo nos mais difíceis, quando a adversidade, mostrando-se partícipe na figura dos gatinhos manhosos, punha-o irritado e a beira de um ataque de nervos.
Possuía muitos pintos à sua disposição e quando o chão do ambiente mostrava-se hostil às ciscadas, bicava um ou outro filhote que devido a esse tipo de ascendência, sentiam temerosa submissão.
Cacarejava habilmente e conhecia sinais sonoros muito raros em galinheiros diversos. Criou certo zunido baixo, rouco, cuja freqüência subliminar punha o galo estrambótico desnorteado. O zumbido mexia com o sistema nervoso central do rixoso e suas noites insones eram sentidas no seu mau humor matinal.
Mas a presunção e a vaidade lhe dominavam a alma.
Podia-se sentir a forma com que mantinha o aviário observando-se o chão impecavelmente trabalhado denotando esmero e apuro nos cuidados.
Gostava de exibir-se e por isso mantinha o hábito de abrir o seu enorme rabo bem defronte ao poleiro, quando as demais aves do terreiro ainda espreguiçavam-se ao raiar do sol.
Sua tristeza maior consistia na consciência de ser o galo fedorento um surrupiador incorrigível. Os 2,5 kg de milho que sumiram misteriosamente da despensa coletiva, o punham louco. Deixava-o mais fulo ainda o fato de que jamais conseguiria punir o penado safado.
Mas quando o bípede emplumado desfilava defronte as armações do casinhoto e as penosas ouriçadas punham-se nervosas a cacarear, o bicho dos pés feios, tomado pelo ciúme, esbanjava energia de protesto, comunicando-se com seus asséclas caudatários, exigindo castigo e punição.
Correndo de um lado para o outro, com as asas tomadas de pesadas gotículas de suor, o pavão esdrúxulo tentava manter o papo cheio. Suas unhas, enormes e obstativas de maior celeridade, eram classificadas como unhões pelos ornitólogos do fazendão.
No portão da casinhola, tentava limpar os pés sempre impuros, batendo-os no chão por três vezes, antes de entrar.
Quando chegava nesse local, lembrava-se que fora no beiral dela (da casinha), vítima da tentativa de assédio sexual quando pintainho. Tinha desafeição especial pelo ajuru falador.
Para o louro, papagaio monossilábico e trocista, que vivia num dos cantos do viveiro, os gritos dos moleques traquinas inspiravm arroubos de revolta e ódio, quando zombavam chamando-o lauro. Diziam: "O louro-lauro era feio e verde". "O louro-lauro era seco igual ao pau serrado". "A troça era pro louro-lauro". "A pândega era pra lauro, o papagaio cornudo".
A gandaia toda produzia um zunzum malquisto pelo pavão misterioso. O pássaro formoso não tinha disposição para os arroubos de festa perene na qual viviam aqueles garotos que denotavam embriaguêz eterna.
E assim de pouso em pouso (a rotação sempre elevada), de bandalheira em bandalheira, de patifaria em patifaria, os dias sucediam-se céleres rumo ao devir do séculos.