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Contos-->ELE AINDA ESTÁ ESPERANDO -- 23/02/2005 - 21:47 (Silas Correa Leite) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

ELE AINDA ESTÁ ESPERANDO
(Uma História de Amor)


Era um casal feliz. Ele, marceneiro, ela, costureira. Tinham um casal de filhos, José Maria, e Maria José. Ele se chamava José Augusto da Silva. Ela, Maria Aurora de Jesus. Casaram-se e a felicidade era uma rotina, quando ela, um dia, sem mais nem menos, resolveu fazer um curso rápido de final de semana em São Paulo, para aprimorar conhecimento, aprender costurar melhor, ganhar dinheiro extra, ajudar em casa. Conversaram, ela fez as malas, ele concordou afetuoso.

E a foi levar na Estação Sorocabana de Itararé. Deram-se um beijo demorado, com lágrimas nos olhos, ambos deram um tiau cheio de até logo mais, e ela embarcou.

Ele ficou ali na vazia estação, esperando-a. Era uma sexta-feira. Ela voltaria no domingo de tardinha. Ele ficou por ali mesmo. Sentou-se num banco lateral, comprou uma maria-mole queimada, tomou uma Crush sem gelo, e pôs-se a esperar, já morrendo de saudade e amor. Os motoristas de táxi estranharam o tipo capiau. O vigia noturno conversou, mas, não teve jeito. Os filhos vieram sondar, ele os deixou com recomendos dos cuidados de um primo vizinho, e ficou ali, lendo o passar do dia, as páginas dos rostos das pessoas que iam e vinham, passageiros de viagens e agonias.

Veio o sábado e ele ali. Ajudou o chefe da estação de trem a arrumar uns painéis, depois ajudou o vigia a sondar uns guris caiporas com faniquitos e estilingues. E foi ficando. A esperar a mulher carinhosa, a sua esposa querida, o amor de sua vida. Até filou um pito ardido de um passageiro conhecido. Comprou encapotados de frango, tomou tubaína de limão. Assobiou uma guarânia antiga. De noite fez frio, ele dormiu sobre o banco. O inspetor de quarteirão lhe emprestou um velho capote que tinha de sobra.

Correu a acontecência na Estância Boêmia de Itararé. Zé Maria, o Marceneiro, tinha ido levar esposa na estação, que embarcara para São Paulo fazer um curso, e, ao invés de voltar pra casa, ficou na estação mesmo, usando o mictório público, banhando-se na fonte próxima, comendo de comidas caseiras do bar, bebendo da torneira adjunta à caixa d’água, entre a plataforma e o almoxarifado. Esperava a volta da mulher. Que romântico, acharam alguns. O delegado até foi sondar, achou esquisito, mas o moço era de boa índole, não bebia, era querido, deixou pra lá. Mas ficou algo encafifado, pulga atrás da orelha, já sondando o devir.

No domingo os filhos Maria e José, foram levar uma marmita com sortido pro pai, a pedido do primo prestimoso que lhes cuidavam. O pai estava pálido, magro e triste, mas, dizia, estava firme, esperando a mãe que amava muito. Eles brincaram de roda-cotia-de-noite-de-dia com o pai, depois ouviram o pai contar alguns causos de pescadores, até que esfriou e, beirando a noite, o genitor pediu pros filhotes retornarem à casa do primo querido. Ele ficou ali. Esperando Maria voltar com o conhecimento desejado e o bendito diploma.

No sábado pra domingo, uma lua cheia, o céu estrelado de Itararé, e José todo saudoso da patroa. Imaginava coisas. Punha sonhos no desconsolo. Quando ela voltasse, iria dar uma festa. Tocaria umas baladas na sanfona pra ela. Torraria, moeria e coaria café. Faria bolinho de arroz. Ele a amava mais que à si mesmo. Veio um fiscal da linha falar com ele, mas ele era tão digno, tão limpo, tão terno, que o sujeito ficou é empatado na empreita de que o amor era forte mesmo. Se ele queria esperar a mulher amada, que esperasse. Que fossem felizes pois eles mereceriam, claro, com um varão apaixonado daqueles.

O Domingo de Ramos arrebentou a mamona graúda do sol, e José estava ali, esperando a toleima de só mais algumas doze horas se tanto, e a sua Maria voltaria. E iriam felizes pra casa. Ele e levaria na garupa da bicicleta azul que emprestaria do vendedor de pirulitos premiados que fazia ponto ali pertinho. Chegaria à Rua 24 de outubro no Bairro São Vicente cantando uma toada caipira para todos os amigos curtirem sua felicidade plena. Buzinaria alegre, festivo. Bateria palmas na casa do primo, pedindo os filhotes de volta. Iria para seu canto, seu lar, seu paraíso. Teriam paz. Ele era mesmo a própria expectativa da felicidade total. Lar doce lar.

Na hora da bóia matina,l um porteiro picego de chácara perto veio solidário, lhe trazer toletes de polenta frita com suco de goiaba. Depois um taxista lhe emprestou uns trocos para um pastel de maçã-verde. Na hora do almoço pintaram seis Itarareenses com lanche prontos, inclusive uma bela marmita de macarronada e um pote de feijoada completa, que ele aceitou de bom grado e comeu como um cavalo. Usou o banheiro do chefe de estação. Depois comprou fiado um aparelho descartável e cortou a barba azul, no espelho de um vagão de trem encostado por perto. Estava prontinho da silva. Em seis horas, sondou no relógio do local, voltaria a mulher com mais experiência e a tomaria nos braços, a tiraria do trem como se colhesse uma rosa de um roseiral encantado no céu de todas as origens e honras.

À tardinha teve jogo, ouviu pelo rádio do bar. Um conhecido lhe emprestou um copo espumante de cerveja preta, ele sondou grilos e cigarras, houve até um ventinho leste esfriando o ar da cidade, e ele ali, esperando a hora da chegada da mulher que fora pra capital empatar algum dinheirinho em curso para melhorar a vida do casal.

Quando o trem lá no alto da cidade velha, apitou o barulho de chegança, parecia, pra ele, que era Deus descendo de carro de fogo do céu. Era só contentamento. E assim bem se aprumou, Correu palitar as unhas sujas de carvão, limpou os pés, asseou-se por demais, como estivesse de lua-de-mel com a felicidade de um maravilhoso reencontro. Toda Itararé sabia que aquela lenda de amor morreria ali, ficaria para a história oral da cidade, pois Maria chegaria saudosa e José tinha dado um testemunho feroz de amor e luz.

O trem finalmente empacou na estação, suspirou fumaças e nódas, e José foi no vagão passageiro, sondar o desmanche final de sua expectativa cascavel. Desceram duas famílias, dois casais, um mendigo que viajara de ratão, mais alguns tipos coiós e os funcionários do carro-chefe, mas Maria não viera. Ele não estranhou. Entrou no vagão. Talvez ela tivesse cochilado. Andou três vezes de ponta a ponta do enorme trem, causado alvoroço na estação. Abriu e desvendou banheiros e até no vagão de bagagem subiu caçando a adorável patroa num arquivo, numa caixa, num sonho.

Ela não estava. Ela não viera. Ele não acreditou, os olhos estilhaçados de frustração e dor. Tiveram que tirá-lo à força do trem que iria desengatar vagões e rumaria pro Paraná. A mulher do vendeiro trouxe-lhe um chá de erva cidreira e uma cibalena. Um mascate lhe deu umas palavras de consolo. O tesoureiro da Caixa que viera de viagem, disse que iria telefonar, prestar atenção, pôr reclamo sobre a ausência da Maria que não voltara. Os filhos vieram saber. Depois de abraços e prantos, um taxista, com pena, com dó, levou as chorosas crianças de volta para a casa do primo.

Ele refugou. Não quis ir. Ficaria ali esperando. Teria um trem dali a seis horas, o chamado Noturno, depois outro dali a doze. E viriam outros. O primo trouxe uma muda de roupas, levou-lhe botinas novas. Um vizinho da estação, com tristeza solidária, trouxe-lhe um corta-febre. Novamente Zé Maria posou ali, usando uns tijolos grandes como travesseiros. Foi a pior noite de sua vida. Um inferno varando seu coração pisado, transido. A alma mergulhada em um mundo-sombra.

O outro trem chamado Noturno chegou quase meia noite. Nada. Chegaram outros, outras horas, outros dias, e Maria não voltara. Mas José recusou ajuda pública. Ficaria ali, se preciso, para sempre, esperando a amada Maria. Talvez uma doença, um acidente, uma coisa perigosa a fizesse demorar. Ligaram pra São Paulo em favor dele, mas tiveram noticia de que ela fizera o curso numa classe enorme, de gente de todo lugar do Brasil, pegara o diploma e ficara de voltar para Itararé, tomara um táxi amarelo pra Estação Ferroviária Júlio Prestes nesse fito.

Mas não voltara. Não voltaria nunca.

José, aos poucos, virou mendigo ali. Era tratado com piedade. Quando os filhos vieram dias depois, ele pediu que não viesse nunca mais, pelo Amor de Deus. Garantiu que só voltaria para casa com a mãe deles. Jurou que a patroa voltaria algum dia, de alguma maneira. Ele tinha certeza. E foram-se embora as crianças doentes, chorando por achar que o pai estava louco. Voltaram para serem criados na casa do primo casado que não tinha filhos, e para o qual elas eram adoráveis.

José Maria ficou uma semana, depois um mês, e o tempo foi passando. Cada trem que chegava, pra ele era uma baita alegria, a todos se dirigia e perguntava como um aloprado (a todos os passageiros que chegavam e saiam) se tinham visto Maria, que pedissem pra ela voltar, que estava ali fiel, como prometera, esperando.

Davam esmolas. Davam doces. Davam afetos. Davam roupas. Embaixo do enorme banco central de peroba envernizada, ele fez seu canto, com sua espiriteira de álcool, sua lata de bolacha cheia de trocados, sua caixa de chá com panos, fósforos e doces encardidos de formigas.

Passou mais de um ano e Maria não veio. Itararé na torcida. O prefeito querendo denunciá-lo ruim do juízo e internar. Por amor, ninguém deixou, não era justo. O chefe da estação levou uma Bíblia pra ele ler, passar o tempo. Ele começou a ler. Mas a cada trem, ele estava lá esperando a sua Maria. Os olhos murchos. Os dentes ruins. As roupas ficando feias com ele, porque eram dadas, emprestadas, não serviam direito. Em poucos anos virou o mendigo, o louco do local.

Deixaram que ele ficasse, era melhor não provocar. Passaram-se os anos, ele fez um barraco sobre o banco do qual se apropriara, arrumou direitinho, com capricho, deixaram ele puxar água e luz clandestina. Ele fazia uns bicos aqui e ali, mas nunca deixava a Estação Sorocabana de Itararé, em turno direto de vigília e espera. Tinha prometido. Tinha palavra para cumprir.


Até que, muitos anos depois, finalmente a linha foi desativada. Até que finalmente os trens foram embora, ou alguns vagões ermos apodreceram no local, o espaço ficou ermo, só restando mesmo, ele ali, solitário, mais um cachorro vira-latas que o adotou. Tentaram fazer ele sair em paz, para tratamento, mas não houve jeito. Chutaram que ele deveria esperar por Maria na nova Estação Rodoviária, mas era tarde demais, muito tarde, ele estava doente, passado de ruim do juízo. Ficou largado ali como um traste, um pacote de renúncia.

O enorme prédio da estação que ele estava aos poucos caiu, ventos e chuvas corroeram tijolos vermelhos. Os filhos cresceram, um dia, José, o primogênito, em época de servir o Tiro de Guerra veio sondá-lo todo carente e trancham, pedir que ele voltasse pra casa, que talvez a mãe tivesse morrido, mas ele não reconheceu o sangue de seu sangue. Não se reconhecia à si mesmo. Estava completamente louco. E sempre que ouvia um barulho distante, de araponga, de caminhão, de jato, de balão, ele corria sondar se não era Maria voltando de algum outro jeito, vindo de alguma maneira, pois ainda a estava esperando divina.

Muitos anos depois, já correndo a lenda de sua loucura de amor, um vigia do quarteirão imediatamente abaixo, pouco conhecido pra ele querer encarar em desaforos de implicância, resolveu ir saber dele pois era um friorento julho de geada braba. Achou-o morto de frio, congelado. Garrafa de pinga do lado. O cão magro e sarnento tomando conta do corpo, soluçando, pra morrer logo depois também.

Foi o mais belo enterro que houve no Cemitério "Lágrimas do Céu" em Itararé. Cem por cento da cidade compareceu. Seu corpo foi inundado por montanhas de flores silvestres. A prefeitura deu o caixão de primeira e um túmulo enorme, sob chorão com copa alta. Os filhos, ambos casados, vieram com os netos bem parecidos com ele. A banda tocou os hinos da cidade. Andorinhas bentas fizeram verão em feito de mãos orando. O padre discursou emocionado. O pastor João Vera da Igreja Assembléia de Deus leu um belo Salmo de Davi. Todo mundo chorou. Zé Maria virou nome da rua, o túmulo virou ponto de peregrinação, pois milagres começaram a acontecer, no dizer do povo carente, carecido de fé e luz da região cheia de crendices.

Mas, a estação, por assim dizer, ficou como se algo encantada.

Quando é noite de lua cheia, tem gente que vê o finado Zé Maria sentado no velho banco de frente do clichê de passagem, contando com a volta da mulher amada. O seu espírito fantasma ainda está ali, esperando-a para sempre. Sempre estará.


O pior de tudo é que o seu filho, que até casou bem e vive algo feliz em memória do pai, tem lá a patroa dele, Dona Isaura Maria, costureira de mão cheia e clientela rica, que já anda lendo revistas coloridas, tendo até, um dia, assustado o marido, prometendo que, futuramente, para realizar um sonho, pensa também em ir pra São Paulo fazer um curso melhor de corte e costura.

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Silas Corrêa Leite

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