Asfalto cinza se embaralha ante o calor. O sol, tímido, acena entre as nuvens. A brisa embala a dança dos papéis na calçada. A umidade de água recente torna liso o caminhar. Uma sacola branca de mercado corre entre as árvores.
Um dia qualquer.
E como um qualquer, desvia das pessoas, dos carros. Desvia a atenção. Viu uma casa de madeira de amarelo mal-pintado. Janelas que recortam o interior da casa em bordas verdes. O vento castiga a veneziana que bate, bate, bate...
As telhas sujas e a calha dependurada, o muro rebocado sem pintura e a pedra brita no pátio. É a mesma casa que seu tio tinha anos atrás.
Os papéis dançam com as folhas secas uma arte sem canção. A veneziana bate. Pam! Um carro buzina e passa o cruzamento em sinal vermelho. A janela de quatro vidros, fechada. pam! Pam! (ooii??) PAm! PAM! (tem alguém??) PAM!! PAm...
O homem de regata bege, calção jeans, sandália de couro, óculos quadrado, magro. Um sorriso grisalho. Uma voz sonolenta, calma e conciliadora. (a mãe pediu farinha, Tio Nene... tem?). Outro sorriso, agora parcimonioso, adornava uma voz firma e despreocupada. O homem magro que vira as costas e anda até a segunda porta à esquerda. Volta com um pacote branco dentro de uma sacola plástica (brigado Tio Nene). A porta fecha enquanto abre-se o sorriso doméstico.
Corro com a sacola na mão direita e seguro o pacote na esquerda. Meus pés empoeirados suam sobre sobre o chinelo de tiras azuis, perco a firmeza da passada. Meu pé escorrega chinelo afora.
O sapato pequeno-desliza na calçada molhada. Um quase susto. Uma resfriada sensação efêmera na barriga. Um semi-possível tombo. Não acredita em muitas coisas. Não acredita em guarda-chuvas. Emissário: Me ame, mesmo sem guarda-chuva. Pensa que daria um pé pelo outro pé impermeável. A chuva caindo e escorrendo deliciosamente por seu corpo, o peso dos cabelos molhados, pingando. Gotas de chuva que acariciam os olhos e devolvem vida. E os pés secos. Nisso tudo pensa. E sorri como um saci.
Uma sacola plástica brinca ao vento. Correndo. Brinco correndo e faço a sacola tremular no vento. Na esquerda, firme o pacote de farinha. A sacola escapa da minha mão. Cai e dança. Ensaia uma ópera sem voz com os papéis da rua. Depois apresentam um balé. Embalagens de chocolate e picolé, panfletos amarelos, embalagem de pilhas, folhas, jornais e isopor. E eu ali, de camisetinha branca listrada de vermelho, calção azul, olhando. Percebo que a sacola tem direito à liberdade.
Sigo, libertário, com a farinha na mão e os pés escapando pelas tiras azuis do chinelo. E assim chego em casa: pé sujo e melecado, sorrindo bom tanto e com a encomenda.
Os olhos dóceis e meigos de minha mãe encontram os meus. Suas mãos encontram o pacote. Sua boca, não encontra as palavras pra me repreender pelos pés sujos. Suas palavras seguintes encontram meus ouvidos. Minha expectativa, gratidão.
Corro pro pátio e subo uma árvore. Arranco uma folha de um galho e começo a dobrá-la junto a haste, pelo prazer de ouvir o suave crepitar. Pego outra folha na mão.
Estava no casaco. Amarela e seca. Segura e a observa como quem espera uma resposta. E a devolve ao vento. O vento que leva a folha, dança a sacola e empurra meninos em corrida.