NOITE DE NATAL
No casinhoto humilde da serra
Nem sombra de braseiro crepita na lareira...
São tão pobrezinhos
Que dali todo o conforto se desterra...
Nesta noite de Jesus
Deitaram-se c´o Sol,
Pois a candeia não tem luz...
Já tudo dorme.
Só a pobre mãe velhinha ainda vela,
Sentada junto da janela
Voltada ao Ocidente...
Pede à Virgem que lhe traga o filho
Que partiu há tantos anos,
Há tantos anos...
Para a América.
Virgem Mãe:
--Pelo teu filho querido que hoje nasceu
Dá-me também o meu...
E as contas do rosário,
Desfiadas
Pelas mãos velhinhas, bentas, encarquilhadas,
Vão passando lentamente...
........................
Sobre o telhado do casebre vizinho,
Vibrantemente,
O galo anuncia meia-noite.
Abre-se a porta de mansinho,
E alguém entrou...
Levanta-se a velhinha
E mesmo no escuro,
Apenas alumiada pela luz do seu amor,
Abraça a figura que chegou...
--Meu filho, meu querido filho...
--Minha mãe – ouve ela responder com voz velada...
Toda a casa dorme...
Só os dois abraçados com ternura,
Soluçam a ventura
E a alegria enorme
Da chegada...
Flores, 24-12-47
Luís de Serpa
SANTA MARIA (4º centenário da cidade de Ponta Delgada)
O sol vai reclinar-se
Em coxins de brocado e rendas purpurinas...
No Promontório o Infante dom Henrique
A arder em febre, num sonho de Grandeza,
Vê partir as caravelas para o Mar de Bruma
A descobrir as Terras do Império...
................
Acorda o Infante...
Numa das mãos segura a fronte sonhadora
E a outra aponta ao longe o Ocidente...
E grita:
Cabral, Cabral, apronta as caravelas,
E vai procurar um rosário d´ilhas,
Que a Virgem do Restelo
Acaba de mostra-me...
Não receies a bruma
Santa Maria Maior
Será contigo...
Velho Cabral, bebendo nos olhos do Infante
A Luz das descobertas,
Faz ao mar as caravelas...
De dia o sol envia-lhe a altura
E de noite as estrelas, debruçadas
Dos varandins do céu,
Indicam ao mareante
A rota desejada...
Passam dias dourados e noites prateadas
E as caravelas avançam graciosas
Com rumo ao norte que o nauta lhes aponta...
Lentamente porém a luz vai decrescendo
E tudo perdendo a forma e a cor...
E por entre o nevoeiro triunfante,
Apenas se descobre a Cruz de Cristo
A sangrar nas velas
Das naus de Portugal...
Traduzindo angústia enorme e crescente
Levanta-se, pelo ar, o soluçar do mar
E o gemido desesperado dos marinheiros...
Mas Velho Cabral, de fronte iluminada,
Não desanima. Caminha sempre avante
A procurar as terras que em Sagres lhe indicaram...
Sozinho, no alto do comando,
Vendo apenas de tudo o que o rodeia
A Cruz de Cristo a rasgar a bruma,
Velho Cabral ajoelha,
Ergue as mãos em prece suplicante,
E do mais fundo do coração exclama:
Avé Maria! Maria do Restelo!
Acode aos teus devotos, perdidos neste mar...
Oh! Cheia de Graça! Do Senhor que é contigo
Pede para nós o Seu Auxílio...
Tu que és bendita entre todas as mulheres,
Não consintas que se perca a Cruz do Salvador,
A Cruz do teu Jesus...
.................
e em toda a volta mais aumenta a bruma,
mais alto sobe o gemer do mar
e o soluçar dos homens...
.................
Prostrado no chão do seu navio,
Velho Cabral, sem perder a Esperança,
Clama confiante:
SANTA MARIA!!!
De repente,
Qualquer coisa se passa de estranho,
De sobrenatural:
Rasga-se de alto a baixo o véu de bruma
E aparece, ali, na sua frente,
Altiva e sorridente,
A ILHA prometida a emergir do mar...
.................
Os marinheiros, que acordaram do desânimo,
Rezam em coro, altissonante e forte:
SANTA MARIA!!! SANTA MARIA!!!
......................
E assim foi dada ao mundo a Terra Açoriana....
Luiz de Serpa
PINCELADAS D ALMA
ESTA FIRMEZA E SOLIDÃO
I
Mergulhei um dia no oceano azul
do teu olhar divino,
do teu olhar profundo...
Penetrei no teu coração
a procurar o amor
que sempre me juraste...
Minha alma regressou desiludida e triste.
Foi de lá que eu trouxe
esta Firmeza e Solidão
aninhadas no meu peito...
ABANDONADO
II
Beijei as tuas mãos esguias
transparentes,
relicário ideal dos meus sonhos,
onde guardara
o meu coração
com todo o seu imenso tesouro
de afecto e de ternura.
Minha vida foi um oceano largo
e manso
de alegria.
Pois eu julgava possuir no meu peito
o teu coração
que em troca me juraras ser-me dado.
Mas um dia tu fugiste,
levando tudo o que eu te dera
e o que tu me prometeras....
Fiquei assim Amor,
sem coração,
incompreendido e abandonado...
Flores Abril-949
Luiz de Serpa
MISSÃO DA VIRGEM MÃE
O criador dos Mundos, senhor dos Universos,
Vendo que era ultrajada a sua Lei
Sofreu ao ter de aplicar justiça!
Rios de sangue correram pelo mundo...
Ondas de fogo alastraram pela terra
Que ficou desolada e triste...
Enlouquecidos pelo poder de mal
Os homens transformaram o planeta
Num campo de lobos esfomeados!...
Milhões de mães aflitas, desvairadas
Pela angústia e pelo sofrimento
Pedem a Deus perdão, misericórdia!...
E as crianças atónitas, torturadas,
Interrogativamente,
Olham para o Céu!...
Ao ver tanto crime, tanta dor, tanta inocência,
A Virgem Mãe chorou...
Acerca-se do filho a Mater Lacrimosa
E apontando p´ro chagado Peito
Implora:
Meu Filho, por estas sete espadas
Salva a minha Terra
A Terra Portuguesa!
Em troca eu te prometo dos meus vassalos
Oração e penitência.
Sobre a face da Pátria Lusitana,
Poisou suavemente,
Um beijo de sol, de paz e de alegria...
Agradecida, a Virgem Mãe
Desceu a este Vale de Lágrimas
E veio enxugar com maternal sorriso
O mar de prantos que alagou o mundo
A querer com sua Divina Presença
Os corações gelados pela dor
E a exigir dos portugueses
O cumprimento do voto que fizera
A seu Bendito filho!
É esta a missão da Virgem Mãe
Rainha nossa
Que hoje nos visita!!!
Ano da graça de Jesus Cristo,
Dia da visita da Imagem Peregrina
De Nossa Senhora de Fátima.
Flores, 2 de Julho de 48
Luís de Serpa
PINCELADAS D ALMA
I
CONTRASTE
Quando te encontro
E se encontram nossos olhos,
O fofo do teu olhar pisa-me tanto...
Somos ambos desgraçados:
Tu procuras,
Desesperada,
O amor que eu não te posso dar,
Eu espero
Ansioso,
O amor que me fugiu...
II
ESPERANÇA
De nós os dois,
Talvez seja eu o mais feliz:
O teu amor nunca será correspondido.
E o meu... Sei lá?...
Eu tenho ainda esperanças!!!...
Flores, Junho de 49
Luís de Serpa
ESTUDANTES
Em busca do calor do ninho paterno
Voltam os estudantes,
Qual bando de andorinhas sequiosas
Da luz da primavera!
Corações de mãe, de namoradas,
Quimeras, sonhos ilusões,
Esperanças a florir,
Tudo trazem eles no coração...
Que saudades, meu Deus!
Ai! Quem pudera,
Regressar aos tempos de estudante
E entrar novamente no meu Lar!!!...
Flores, Agosto de 49.
Luís de Serpa
NINHO D AMOR
Ali no peitoril da janela do meu quarto
um pombo branco ficou a noite inteira...
...................
Tinham noivado
E do seu amor puríssimo
Nasceram dois rebentos...
......................
Todo o santo dia o casal enamorado
transporta p´ros filhinhos,
nascidos num buraco da parede
por cima da janela do meu quarto,
os biscatezinhos com que os alimentam...
Mas o ninho é pequeno e estreito
não cabem lá os quatro...
A mãe aninha-se com os filhos.
E o pai, atento e amoroso,
fica toda a noite vigilante...
Não venha alguém quebrar o sono
e a quietude santa,
do seu ninho d´amor!!!...
Luiz de Serpa (24 de Junho 1950)
ESPERA
“Desde a última guerra, numa estação de caminhos de ferro duma cidade alemã, apareceu todas as manhãs, â chegada do comboio, uma senhora já de idade, a esperar o filho que partiu para a guerra”
Dos jornais
Ao passarem os soldados para a guerra
a pobre mãe soltou um grito doloroso...
Um homem cinzento e mau,
com tiras amarelas nas mangas do casaco,
veio roubar-lhe o filhinho dos braços...
E assim lhe levaram o seu menino
(ficou sempre sendo o seu menino
desde que nasceu
e perdeu
todos os outros)...
Sozinha não pode viver...
Mas ela sabe bem
que o filho há-de voltar,
pois tem pedido à Virgem Mãe
p´ra lho trazer...
A terra, o ar, o sol, o universo,
tudo foi criado para ele,
só para os dois,
pois nada mais existe neste mundo.
Sozinha não pode viver...
Mas ela sabe bem
que o filho há-de voltar
pois tem pedido tanto à Virgem Mãe
p´ra lho trazer.
Todos os dias, de manhãzinha,
à chegada do comboio,
a velhinha. já quase octogenária
apareceu ali na estação
à espera do filho...
Flores, Junho-50
Luiz de Serpa
CARTA DESABAFO...
MARIA:
Longe de ti, querida Maria,
Sinto-me tão sozinho
Tão abandonado e incompreendido...
P´ra mitigar esta saudade ,
Tão pungente,
Dar largas ao sentimento
E faço meus versos,
Os meus poemas,
Sempre a pensar em ti...
Mas ninguém compreende...
Dizem que os meus versos
Não são versos,
Porque não tem rima
Métrica e que não sei que mais...
Como entristece e dói,
Querida Maria,
Toda esta pobreza
De sensibilidade...
Se eu não conhecesse a miséria
Destes pobrezinhos
De alturas,
Se eu não soubesse
Como se acham embotados
Pelo egoísmo vil
Da materialidade,
Eu lhes perguntaria
Pela métrica das nuvens lindas
Que formam o firmamento
Pela rima de cor
Das flores garridas
Que esmaltam as campinas
Pela simetria das estrofes divinas
Do Poema Eterno
De toda a Criação?!!!
Mas eu não lhes pergunto nada,
Porque sei que a resposta
Tornaria ainda mais funda
E triste
A minha solidão...
Fico hoje por aqui.
Com saudades,
Cada vez mais vivas,
Beija as tuas mãos
As tuas lindas mãos
Que tantas vezes refrescariam
Minha fonte cismadora
E escaldante,
E a tua boca
Que tanto bálsamo
Entornou nesta inquietude
O teu
Do coração
Flores, Janeiro-51
Luiz de Serpa
NO MEU MUNDO INTERIOR
Trago dentro de mim sonetos burilados
canções de amor, nocturnos de ansiedade
e toda a poesia
duma beleza sem par...
Há dentro de mim um Universo inteiro
de Prazer e de Dor.
Vulcões frementes de alegria brava
e pélagos infindos de tormento enorme...
Risos de alvorada, auroras boreais,
abismos infinitos dum mal que não tem nome,
a tranquilidade do justo, o sofrer do condenado,
o pipilar das aves, o arfar dos ninhos,
pisados por ingratos, por ladrões e por perdidas,
o cantar das águas, o gritar do vento,
a vibração interior de todos os elementos da Natureza inteira,
o drama dos infinitamente pequenos
--todo o seu amor, todo o seu ódio, toda a sua vida—
a vida molecular, a vibração do átomo,
tudo vive em mim...
......................
E até há dentro em mim
que só eu criei e que ninguém conhece...
todo feito de Inquietude e de Grandeza,
de formas divinais de beleza estranha,
de silhuetas vivas dum sonho imaterial,
de movimentos e cor jamais igualados...
Há a Perfeição Absoluta que todo o género humano
ainda não pôde criar...
Mas ao pegar na pena p´ra vazar no molde
da forma clássica, do ritmo cadenciado,
esta Beleza Eterna que no meu peito habita,
toda ela se transmuda num disforme,
num ritus de máscara repelente,
que fica a rir de mim........
Flores, 51 LUÍS DE SERPA
PINCELADAS D´ALMA
Já passaram tantos anos
e tantas tempestades
sobre o tempo em que o céu do nosso
era todo azul
e não conhecia nuvens...
Na minha fronte, as brancas vão surgindo
as rugas na minha face
e no meu coração assentou o desespero...
mas p´ra que tudo não seja inferno para mim,
nas noites calmas é-me permitido
sonhar contigo.
Volto então a ver-te sempre a mesma,
sempre menina e moça
a envolver-me
naquela ternura e suavidade
do teu olhar divino...
Flore, Junho 51
Luís de Serpa
Sala das Musas
N OCTURNO
Sob as ogivas d´ouro do meu palácio de marfim,
pela calada da noite,
vem sentar-se um velhinho, mendigo esfarrapado,
que passou a mocidade inteira
sem ter uma dor, um sofrimento,
e é hoje milionário de miséria e de saudade...
Teve reinos enormes de prazer e de alegria,
riquezas fabulosas que contar não pôde...
Perdeu tudo... Um incêndio devorador
tudo lhe levou: a casa, a mulher, os filhos, a luz dos olhos
e a alegria de viver...
Só lhe ficou o violino amado,
a sua glória imortal
que lhe arrancara aplausos
louros, frementes do mundo todo inteiro...
Todo as noites, quando a lua nasce
e cresce e erra a tristeza e a saudade,
artista Máximo do violino mágico
vem tocar sob as ogivas d´ouro
do meu palácio de marfim...
E o violino soluça longamente,
destilando na minha alma sensações estranhas,
vibrantes de mágoas que não têm remédio...
mas que são conforto p´ra aridez da vida...
Debruçado no terraço de jaspe do meu castelo dourado
e recostado nos coxins de filigrana de brocado
escuto, entontecido, embaladoramente
o violino da paixão e da saudade...
À minha volta orquídeas d´ouro,
os cravos rubros, as tulipas encantadas,
choram longa, mansa, longamente,
fazendo sangrar o meu coração...
E pela noite em fora, pela noite morta,
o violino chora, chora mansamente...
traduzindo num soluço repassado
a minha dor sem par...
Lentamente desço as escadas d´ouro
do meu palácio encantado
e venho sentar-me junto do ceguinho
que traduz a minha dor, a minha inquietude...
E, demorada, apaixonadamente,
sofregamente beijo o violino que é a minha alma
e toda a minha vida...
E à meia noite quando a lua morre
as nuvens frias a vão enterrar,
o violino grita, grita, loucamente,
a dor infinita da desolação
que me rasga o peito...
Nesta noite eterna, que não mais tem fim,
o violino dolorosamente,
em crispações nervosas que arrepiam fundo,
soluça, geme, grita, expande e traduz
toda a minha dor!!!
Luís de Serpa
Em A VILA
14 de Junho de 1958
Sala das Musas
ANSIEDADE ATLÂNTICA
Esta ansiedade, esta Inquietude vibrante dentro em nós,
Nos corações ilhéus,
É filha do Oceano que foi lavrado
P´las quilhas das nossas caravelas,
E abençoada pela Cruz de Cristo
A sangrar nas velas brancas de quinhentos...
Esta ansiedade, esta Inquietude Atlântica
Que nos traz cativos,
Escravos acorrentados e submissos,
É filha da solidão que iluminou o rumo
Dos nossos mareantes...
Esta ansiedade esta Inquietude-Mor
Que nos impulsiona e atrai
P´ro Eldorado que nos habita a alma
E a que o povo açórico,
Chamou América,
É o sangue dos nossos Avós marinheiros
A correr nas nossas veias!!!
Luís de Serpa
Em A VILA 1 de Agosto de 1959
Sala das Musas
CARAVELA DAS SAUDADES
Qundos todos são
Eu também fui.
Fui armador duma frotanumerosa
Que lancei ao largo dos desejos
E a altas ambições...
Por longos anos,
Arrostando tempestades,
Percorreu todos os quadrantes,
Sem ter descanso,
Sem fazer aguada,
Sem encontrar abrigo.
Todos os meus navios se perderam...
Só a caraveloa onde embarcara
Os sonhos amiores
E as mais caras ilusões, regressa agora
Ao porto do meu coração.
Vem com as velas rotas,
Os mastros partidos,
Desmantelada,
Mas carregada de saudades
Daquilo que eu não fui...
Costa das Flores, Setembro de 1958
Luís de Serpa
Sala de Musas
CARTA DO CORAÇÃO
Nas pontas dos dedos
as contas do rosário fizeram covinhas
como na face das crianças pequeninas
quando sonham com os anjos...
Há meio século que o filho partira
P´ra tão longe...
Todos os outros que foram seus
e lhe encheram a casa
e co coração,
sairam também um dia
p´ra não mais voltar...
Mirrada de saudades
a velhinha encarcalhada e benta
vai ter com a senhora Perpétua.
-Senhora vizinha,
escreva uma carta p´ra ´a América.
Preparados papel e pena
foi.lhe perguntando:
-O que quere mandar dizer?
Então e velhinha,
com pureza cristalina no olhar infantil
ditou:
´Querida filho:
Saudades... e aquelas...
Se o mar fosse atalhado... Avé Maria!!!´
Luís de Serpa
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