O vermelho forte da camisa vestida por Rildo produziu certa sensação de estranheza em Van Grogue. Seus olhos túmidos indicavam que as pingas ingeridas, nessa altura da vida, provocavam mais danos do que prazer.
Os dois encontraram-se sob a marquise do Banco da Colônia, ali em Tupinambica das Linhas. O relógio denunciava: eram quase dez da noite.
O vazio da praça era indicativo de que o pessoal todo estava defronte seus televisores absorvendo as tramas folhetinescas.
No boteco do China, quebrando o silêncio tumular, a mariposa melancólica inseriu a ficha na máquina acionando-a. O som sertanejo vibrou seus acordes arrepiando os pêlos da condoída. No arvoredo as penas dos pardais desejosos dum sono bom, encresparam. Arrulhos de desconforto foram ouvidos dentre as folhagens.
Rildo emitiu um som gutural em resposta à saudação do parceiro. A vivência e o contato diários suprimiam os cumprimentos formais. Van Grogue disse: "Roubaram todo o dinheiro da prefeitura. Ninguém vai receber o salário esse mês." Rildo, sem disfarçar a voz afeminada respondeu: "Também pudera! Esses políticos bicudos são um desastre na direção".
Um cheiro forte de cocô fez com que eles olhassem as solas dos sapatos. A curiosidade não foi forte o suficiente para faze-los descobrir o foco da sujeira.
Rildo lembrou-se do tempo em que morava em Brasília. As ruas largas, bem asfaltadas e limpas, proporcionavam o privilégio de faze-lo sentir as fragrâncias das rosas contidas no ar.
Van Grogue provocou: "Você viu o tamanho da barriga do prefeito? A senhora daquele intestino inchado é uma só: a baita lombriga letárgica."
O traveco Rildo respondeu lançando o dorso da mão direita em direção ao solo: "Eu conheço a figura! Aquela barbicha rala não me engana. Sei que quando saia na banda do bule agasalhava croquetes. O último deles foi enorme. Aconteceu no banheiro do bar da Lola. Você se lembra da Lola?"
Van Grogue afagou os cabelos, que já rareavam; ao examinar a palma da mão notou que chegara o momento do seu banho semanal. Ele disse: "É claro que me lembro! Era a maior puta que Tupinambica das Linhas já teve. Na sua casa, lá na zona, no princípio, era só gente fina que freqüentava. Tinha capitão do exército, presidente de câmara municipal, prefeito, vereador e delegados de polícia".
Rildo passou as mãos nos ombros opostos; com a direita espanou o esquerdo; com a esquerda, o direito. Era uma tentativa séria de afastar os prováveis flocos de caspas.
Van Grogue, ao acender um LM ofereceu ao colega.
Rebolando saiu da padaria, com um pacote nas mãos a vovó Bim Latem. Depois que fora içada ao cargo de chefe de gabinete do governo tumultuado do Jarbas, ela que já tinha o nariz empinado, agora estava insuportável.
O avanço dos anos não impedia os movimentos vigorosos que ela despendia ao caminhar. Quando chegou perto da dupla disse dirigindo-se ao Van Grogue: "Você sabia que o cigarro causa bronquite e asma?" Os dois olharam-na surpresos e curiosos julgaram estar diante dum ser surtado.
A vovó Bim Latem aproximou-se, e com o dedo indicador da mão direita apontado para o nariz do Grogue continuou: "Eu tenho uma sobrinha que adquiriu essas doenças porque os pais dela fumavam. Não havia remédio que curasse a criança. Ai, graças a Deus consegui uma simpatia que deu certo. Precisei dar à menina um apito. Só aquilo salvou sua alma. Arrumei confusão com a vizinhança inteira, mas que a menina sarou, sarou!
Sem dar tempo de respiro à dupla, a vovó Bim Latem continuou: "Olha eu tenho aqui um bolo de chantilly. Vejam está uma delícia. Querem experimentar?"
Os dois entreolharam-se e em uníssono responderam: "Não senhora. Muito obrigado. Isso não é pro nosso bico".
Lambendo os dedos melecados, a vovó Bim Latem afastou-se rebolando aquela sua bundinha mole. Ela precisava dormir cedo para acordar cedo, afinal meu amigo, minha amiga, e senhoras donas de casa: ela era uma funcionária pública excelente.
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