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cronicas-->A Fome -- 21/11/2003 - 22:10 (Luísa Ribeiro Pontes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A Fome


No meu bairro dos subúrbios a vida decorre calma na aparência, embora não cresçam rosas nos beirais, nem sorriam sardinheiras nas varandas. Divide-se o dia entre o êxodo matinal e o regresso ao fim do dia, desperdiçadas horas em filas de trànsito para a grande cidade. Não eu, que trabalho no bairro dos prédios de nome poético, mas plantados como sementes que a eito caem na terra enxuta. Nem os meus alunos que são os filhos dessa gente de vidas a muito custo arrumadinhas, mas que às vezes adivinhamos humildes e envergonhadas. São brancos, pretos, indianos, muçulmanos, alguns chineses, tudo gente que labuta e precisa de voltar para dormir. Por isso a fome anda por aqui sorrateira, escondida em cada esquina do bairro, com essa cor pálida que nunca se chega a definir como tal, e pode parecer cansaço ou coisa ocasional. Nunca a vi de frente, arranhando janelas ou amarrotando orlas de vestidos. Escondida, sempre escondida, vai mordendo onde pode, mas nunca aos mesmas estómagos, nunca nos mesmos andares, mudando caprichosamente de prédio, como pulga que muda de cão.
Mas hoje, a fome apanhou-me a mim, pelo adiantado da hora, em pleno coração da grande cidade, onde fui porque no meu bairro só existem prédios com camas para as pessoas dormirem e há coisas que só se fazem na grande cidade. Rapidamente me sentei num daqueles lugares inventados para o come-em-pé, ou então com duas ou três mesas em que nos acotovelamos com comensais de ocasião. O empregado costuma acolher-nos com ar de toureiro que espeta as farpas no touro e desaparece em triunfo, e os seus olhos são um convite claro ao come-depressa-para-dar-lugar-a-outro-e-não-compliques. Ok. Carne de vaca guisada. Mas eu já não moro há muito, muito tempo na grande cidade e portanto esqueci-me que lá a fome não se mata nunca, nem se esconde - entra-nos pelos olhos adentro como espadas ou hastes sem flores. Arrasta-se pelas ruas como cão que ferra a todos, deixando um rasto de si nos corações, nos corpos, nos olhos suplicantes, nos estropiados membros, na boca dos milhares de indigentes, velhos, ciganos, criaturas de olhos rasgados e maçãs salientes, pálidas, um português esquartejado, como o corpo que já não se sente...
E ela veio, sorrateira como no meu bairro, abeirar-se de mim, inequívoca, sem se encapotar de tristeza ou cansaço. Comia eu junto à vitrina que dá para a praça do Areeiro dita, esse lugar que respira Estado Novo e tem agora o nome de um político daqueles que nunca teve fome. Levanto os olhos sem bem saber porquê, talvez por me sentir assim uma vitrine de iguarias e esbarro com uns olhos ávidos para o meu prato, à transparÊncia do vidro. Foi breve o ancorar de olhares, mas eloquente a conversa. Um dedo em riste para o prato, agitando-se em muda interpelação e eu que aceno com a cabeça, não sabendo bem o significado do meu gesto afirmativo. E o homem entra pelo restaurante, e antes que o empregado possa reagir, estende a mão para o meu prato e leva à boca quantos bocados lá couberam, um a um, os olhos abertos para comerem também, naquela sofreguidão que foi certamente a contenção de muitas e muitas horas... Ainda me arrebanhou arroz antes de sair, humilde, envergonhado, recurvado para a presa, arrastado pelo braço do diligente patrão da casa... E eu levantei-me para o chamar. Já não o vi. A fome ficou ali também comigo a mirar o rumo dos seus passos, procurando já o seu encalço, como cão fiel que segue, arreganhado, o dono cravando-lhe os dentes na carne, num rasgar sem tino. Eu já não comi. De repente percebi que nunca antes tinha tido fome.



Hoje, ano de 2003, num país à beira do mar, mal plantado...

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