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Contos-->Festa de Santo Amaro -- 31/03/2005 - 23:02 (Antonio Perdizes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
FESTA DE SANTO AMARO

Sozinho, na mesinha do canto, Domingos bebia devagar a cerveja, olhando admirado para Sebastião que dançava no centro da pequena raia.
Admirado sim, como é que pode alguém como Tião, grande, pesado e parecendo desajeitado, deslizar assim, trocando as pernas de lugar com tanto ritmo e graça e, arrastando sua preta com desenvoltura, atrair a atenção dos poucos presentes.
Não, não eram apenas as pernas. A expressão do olhar com o rosto virado de lado e olhos semicerrados, as mãos grandes enlaçando a cintura do par, apertando-a contra o peito, seguindo pela pista, colado e embalado sem olhar para lugar algum, parecendo se deliciar com cada passada sobre o assoalho de tábuas brutas de pinho, que afundava e trepidava. Sussurrava palavras no ouvido de Ernestina, filha de Dona Zilda, a cozinheira, que sorria encabulada. Dava para antever como aquela noite iria terminar.
A raia fora construída na véspera, junto à velha acácia que lhe dava proteção. Para economizar ficou sem o telhado e foi cercada por barrotes de madeira que delimitavam a área. Ficava a apenas três metros do salão principal, esse grande e com telhado, num plano inferior no fundo do terreno. Nessa posição aproveitava o som de um alto-falante de corneta, colocado junto ao telhado, que transmitia a música de um toca-disco por todo o terreno, pois não havia verba para pagar uma orquestra. Um único bar servia as raias e quando alguém de baixo queria alguma bebida, gritava e ela, então, era descida dentro da cesta, por uma corda.
Junto dali a churrasqueira exalava um cheiro de carne assada que ajudava a espantar os mosquitos. O dinheiro reservado não dava para tanto e, então, resolveu guardar apenas para a cerveja. Entornou mais um copo ruminando sua decepção. Para ele a festa acabou, não poderia fazer mais nada. Os casais, já formados, dançavam e as poucas moças que sobraram não eram interessantes, mesmo porque, naquela hora, não queria saber de mulher alguma.

- Não podes entrar, sabe.... é a tradição da festa, dissera Seu Ariosto, dono da venda na saída da vila e, no dia da festa, transformado num zeloso porteiro.
O olhar de desencanto que Domingos lhe dera não o comoveu. Não aceitou a nota estendida para pagar o ingresso.
- Lá atrás, pagarás apenas a metade, disse apontando o caminho.
Acabara, assim, um mês de conversa no banco da praça junto à igreja, nas pedras junto à praia do rio e na escadaria defronte ao clube. O progresso lento do namoro, com avanços e recuos, toques de mãos, beijos nas faces e recusas para qualquer carinho mais íntimo aguçou o desejo. O jeito terno, o sorriso e o olho no olho deixaram-no completamente apaixonado.
A festa de Santo Amaro seria sua redenção. Ela não teria como se livrar do aconchego numa dança mais lenta, das mãos deslizando na cintura, do roçar das faces e dos sussurros ao pé do ouvido.
Maria das Graças nem pareceu excitar, fez uma cara de desencanto e, largando sua mão, um gesto que lhe pareceu um aceno de despedida, virou as costas e correu para o interior do salão. Agora, deveria estar dançando com outro. Domingos ficara ali, sem dizer uma palavra. Era conhecido como um encrenqueiro habitual, mas vendo Graça disparar sem protestar, sem uma ajuda, deixou-o embasbacado e sem ação.
Ouvira falar que na Festa de Santo Amaro os negros dançavam noutra pista, o que não esperava era ser reconhecido como tal. Não era igual a Tião, que, agora, estava se arrastando cada vez mais lento na pista de dança, um preto retinto, com lábios grossos e consciente da sua raça.
O pai branco lhe dera as feições finas e o cabelo ondulado e castanho escuro. A pele parda fora herdada da mistura com a mãe, uma negra vistosa e alegre que vivia em Angra, litoral do Rio de Janeiro. Foi de onde viera, acompanhando a empreiteira que lhe oferecera uma vaga, pois era um trabalhador qualificado de carteira assinada, na obra da barragem, nesta distante vila que fica na margem de um rio de águas escuras. Tão isolada que, na época da chuva, a lama da estrada não deixa nenhum carro passar e a viagem para a capital precisa ser feita de trem. Noutra época essa lama se transforma, vira pó, sufocando veículos e passageiros.
Sentira a satisfação com que Ariosto barrara sua entrada, fora uma demonstração de poder contra um trabalhador de fora, tudo por maldade, para humilhar e atrapalhar seu namoro com uma moça do local e, também, uma grande provocação que não ficaria assim.
Quisera ter os braços fortes de Tião, seu colega de trabalho na empreiteira, onde era requisitado para todos os serviços que exigiam grande força muscular como cravar estacas de madeira, usando uma pesada marreta de 5 kg e com a qual conseguia golpear sem parar. Teria baixado a mão pesada na cara de Ariosto e arrancado todos os dentes, acabaria, ainda, com todos os que se atrevessem a enfrentá-lo, acabaria com aquela festa nojenta. No entanto, Sebastião estava ali, conformado e feliz da vida, dançando cada vez mais coladinho, cada vez mais devagar. Imaginou o calor e a mistura de suores que se formara entre aqueles dois corpos e o que estaria acontecendo por lá. O leve balanço dos quadris de Ernestina denunciava tudo. Ele não escaparia de uma semana de chacota, com todos os colegas imitando o jeito de dançar.
Que contra-senso! Tião, grande, forte e feio, era pacífico e dócil, aceitava tudo, inclusive aquela humilhação da separação das raias e estava ali, conquistando sua mulher e se dando bem. Ele, brigão, bem apessoado e apaixonado, estava só, inerte e bebendo a derrota.
Não, não estava mais apaixonado, o que Graça lhe fizera estava além da sua capacidade de aceitação. Fora cruel ao deixá-lo daquele jeito. Se ela tivesse dado algum apoio teria reagido, mesmo não tendo a força de Tião, teria arrebentado tudo, pois era corajoso. Sim, ela era a culpada da sua falta de ação e da humilhação que sofrera. Fez-se passar por moça prendada para agora, depois de um mês de aproximação e namoro certinho, em que ele aceitara todas as regras, abandoná-lo nessa maldita festa, dançando com outros. Era uma rameira, isso sim, uma puta. Passou-se por trouxa, deixara de tocar nos seios, de deslizar a mão por entre as coxas porque ela, afastando-a, lhe pedira para não fazer mais isso.

- Graça, te odeio e vá para o inferno, diria isso com todas as letras assim que cruzasse novamente com ela.

- Que raio de música é esta? Tocar música gaúcha numa festa! Quem vai dançar desse jeito? Ainda se fosse um xote. Ninguém está vestido com botas e bombachas, exclamou Sebastião indignado, parando de dançar e indo se sentar com Ernestina junto à mesa de Domingos.
- Cadê a Graça? quis saber Tião.
- Sei lá.
- Ah, não te deixaram entrar. Nem tentei, para que dar esse prazer para os canalhas. Vim direto para cá. Não paguei ingresso e ninguém teve a coragem de cobrar.
Percebendo a desolação de Domingos, calou-se. Apanhou um copo, encheu de cerveja e dividiu os goles com Ernestina.

A musica finalmente terminou e Domingos levantou-se, iria embora, nem a saideira iria beber. Então, ouviu a voz de Graça chamando-o energicamente.
- Domingos, o que viestes fazer aqui? Procurei-te por toda a rua, pensei que havias ido embora, nunca imaginei que virias para cá.
- Não... é que desaparecestes salão adentro e fiquei só. Não sabia....
- Seu bobo, fui avisar a Ângela que iríamos para outro lugar, esta festa é muito chata.
- Bem, e para onde vamos? quis saber.
- Vamos passear na praia e no dique da barragem. A lua está tão linda! apontou feliz para o céu.
Domingos se iluminou, a nuvem cinzenta que pairava sobre a cabeça desapareceu. Subiu sobre a mesa e, erguendo as mãos, gritou.
- VIVA SANTO AMARO!










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