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Cronicas-->UM VIAJANTE DO TEMPO NUMA CIDADE SEM-MEMÓRIA E INURBANA -- 13/12/2003 - 02:57 (Carlos Jatobá) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

UM VIAJANTE DO TEMPO NUMA CIDADE SEM-MEMÓRIA E INURBANA


por Carlos Jatobá


  
   
Ao caminhar pela Praça Maciel Pinheiro, em pleno centro do Recife, observo os sobrados ali existentes como remanescentes dos muitos que lá existiam. Alguns foram descaracterizados comercialmente, poucos ainda se preservam. Enfim, eram construções sólidas e que abrigaram, até os anos 60, muitos judeus. 


    No primeiro terço do século passado, graças à boa vontade do governo brasileiro e a tenacidade do Jewish Colonization Association (JCA), fundada por filantropos semitas centro-europeus, grandes quantidades de judeus perseguidos por pogroms na Europa oriental puderam vir para a América do Sul, onde as terras eram promissoras. O Brasil, particularmente, recebeu muitas levas e das quais todas tinham algo em comum: o Recife era o caminho de passagem natural para o centro-sul e o restante do país. Muitos dos que aqui aportavam, por cá ficavam.


    Ante à paisagem que a mim se descortina, sinto-me estar, como um nauta, transcendendo o tempo e o espaço. Subvertendo, de certa forma, a cronologia.


    Pareço divisar, entre as pessoas sentadas em um dos bancos da praça a meditar, o senhor Pedro Lispector. Tínhamos marcado uma visita à sua casa. Estamos, pois, na quinta-feira 1º outubro de 1931. A revolução da Aliança Liberal está em plena marcha e completando o seu primeiro ano no dia 3, próximo. É-me bastante fácil distingui-lo. Apesar dos dez anos de Brasil, ainda costuma usar terno de paletó "sete-oitavos" com chapéu abado e lanado, ambos pretos. Tinha feições serenas de um Rabbi (Rabino) ou um Chazan (espécie de Diácono), às vésperas de um Shabat (Sábado judaico) ou Yom Tov (festividades, efemérides).


    Cumprimentando-me, convida-me para sentar ao seu lado. Ao retirar o chapéu, pude ver-lhe a kipá (espécie de capelo) igualmente escura com a figura bordada, em claro, da Maguen David (estrela de seis pontas) ao centro. Pergunta-me, ante à curiosidade dos transeuntes, se não estava incomodado. Respondo-lhe que não e ainda puxo uma brincadeira usando o tema. Pergunto-lhe: É verdade que o judeu só responde a uma pergunta com outra? Ele, prontamente, inquire-me: Quem lhe disse semelhante coisa?


   Falamos de sua pequena aldeia de Tchetchelnik, num shtetl (comunidade) de agricultores, artesãos e pequenos comerciantes encravada nos confins da longínqua Ucrània. Também, de sua vinda para o Brasil em 1921, a perseguição do Império Czarista e sua adaptação ao Recife. 


   Pareceu-me estar saudoso. Contudo, prontamente me falou: Aqui saboreamos muito o sionisnic (caroço de abóbora torrado). Ah!... O jerimum aqui é muito bom! O klops (bolo de carne ou galinha assada), também nos satisfaz. O kasher (alimento de acordo com os preceitos dietéticos da Torah) aqui é rico. Certa vez fomos convidados, aqui no Recife, para irmos ao "Cachimbo" de boas vindas a um recém-nascido goi (não judeu) e fez-me lembrar muito o nosso Shalom Zachor. A propósito, vamos à minha casa?


    A poucos passos, na esquina com a travessa do Veras, está o sobrado de número 387. Adentramos à simpática e singela residência dos Lispector. Na ante-sala está afixada sobre a ombreira da porta, à direita de quem entra, no terço superior da altura desta, um símbolo da fé judaica e merecedor de grande respeito: a Mezuzah, que é uma caixa tubular de madeira, vidro ou metal, em geral de 3 a 4 polegadas de comprimento, contendo um pedaço pequeno de pergaminho, no qual em 22 linhas estão escritas passagens bíblicas que fazem parte do Shemah (oração da unicidade do D us de Israel). Acho tudo muito ritualístico, bonito, respeitoso e diferente. Deparo-me, também, com uma grande Bandeira do Brasil e um quadro representando o pássaro Solovei (o rouxinol símbolo da Ucrània).


    O Sr. Lispector chama suas três filhas:  Elisa, Tània  e Clarice. A esposa Marieta falecera há algum tempo. Preocupa-se em dizer-me que como bons ashkenazins, falam iídiche (dialeto judaico, medieval, de origem germànica transposto para a Europa oriental) entre si; mas, que se esforçariam para falar um bom português comigo. Para ser-lhe cortês, no alemão presente (Hohes Deutsch), replico: Ich Bin so glucklich fur dies! (Eu estou bastante lisonjeado com isto!).


    Depressa, passo a me desvencilhar dos presentes que trago. Para as moças Elisa e Tània, um José de Alencar e um Machado de Assis, respectivamente. Porém, para a menina Clarice "As reinações de Narizinho" de Monteiro Lobato é providencial. Pois, sei que esta iria prestar exame de admissão ao curso ginasial para o Ginásio Pernambucano.


    Ao longo da visita, sou convidado a provar um borsht (comida russo-polonesa feita com beterraba, creme de leite, batata e carne) com colbeis (salame kasher). Para beber temos um ótimo vinho, semelhante aos do Arba Kossot (quatro copos) servido no Seder (cerimónia) do Pessach (passagem = comemoração do êxodo judaico do Egito, sua identidade como povo e surgimento de uma nação). Conversamos bastante sobre o Brasil e nossas esperanças para que tudo dê certo nesse novo momento político. Porém, já se faz tarde e tenho que partir.


    Nisso, saio desse "transe" inominável ao ser interpelado por uma garota, em andrajos, que me pergunta: O "Tio" não quer comprar "vale-transporte"? Tenho "A", "B" e "C" é só escolher! Respondo-lhe que nada desejo comprar e sigo meu caminho com destino ao Pátio da Santa Cruz, pela rua do Aragão.


    Só aí chego à realidade. Estou em 2003.  A casa em que habitou a escritora Clarice Lispector foi-se no tempo. O prédio é hoje um estabelecimento comercial.  A praça, um paraíso de biscateiros e excluídos sociais. Isso faz parte da História.


   Mais uma vez intuo que, em nossa cidade, ao alargarmos ruas podemos estar estreitando mentes. Somos pobres na preservação da memória histórica; mas, ricos na assimilação da dita virtual.


    Sigo meu caminho. Já em pleno pátio e ao passar um desses pequenos coletivos, sinto cruzar - proveniente do mesmo - sobre minha cabeça, um pote consumido de iogurte que espalha restos para todos os lados. Ao me virar, ainda vejo o protagonista da incivilidade, afastando-se; e, com um largo sorriso, gritando:   Tira a cabeça do caminho! Mané!...


 


Copyright © 2003 by CARLOS JATOBÁ.
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