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Contos-->A Eutanásia -- 20/04/2005 - 11:14 (Jadson Buarque) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

I


Não quero morrer. Não quero morrer ainda. Apesar dos pesares, apesar de eu não sentir mais o meu corpo, apesar de só me restar a audição como sentido, eu não quero morrer. Ainda me resta esperanças. Não sei o que está acontecendo no mundo, mas trancado no que me resta devida, eu sonho com o dia em que a medicina entrará uma cura para o meu caso, ou então, um milagre. Jesus ressuscitou Lazaro depois de três dias de morto, deve ser fácil para ele me tirar de cima dessa cama enquanto eu ainda estou vivo.
Como eu gostaria de comunicar de alguma forma as minhas esperanças para a minha família. Como eu gostaria de mostrar pra eles que eu não sou um boneco em cima da cama e nem estou esperando a morte. Eu preciso falar pra eles que eu não quero um golpe de misericórdia, eu ainda quero viver.
O médico que vem uma vez por semana na minha casa diz que eu estou praticamente morto, que eu não perceberia a diferença de estar na cama ou enterrado debaixo do chão, que seria melhor para minha esposa e meus filhos dar um jeito de se livrarem de mim.
- Ele está em estado vegetativo.
Vegetativo. Nunca pensei em como é cretino este termo. Eu não sou um vegetal como ele diz. Nunca ouvi dizer de um vegetal que sonhasse em sair correndo da gaveta da geladeira antes que o devorassem, nunca ouvi falar de um vegetal que se desesperasse quando ouvisse alguém falar em sua morte.
Será que eu sou egoísta em querer ficar vivo, fazendo com que as pessoas que amo cuidem de mim? Será que eu egoísta me apegando tanto a vida quando tem gente querendo que eu parta? Não, eu apenas não suporto a idéia de morrer sem lutar, não suporto a idéia de alguém querer destruir minhas esperanças com uma injeção.



II


Não devia ter acordado.
Às vezes eu acho que o fato do derrame ter deixado apenas minha audição funcionando foi uma espécie de castigo, pois se não fosse ela eu não seria despertado do meu sonho maravilhoso ouvindo uma conversa horripilante.
Se não fosse minha audição, eu ainda estaria numa praia deserta fazendo sexo com minha esposa. Pelo menos nos sonhos todas as partes do meu corpo estavam funcionando e eu não precisava temer o que ouvia.
Meus ouvidos me trouxeram de volta para o mundo de trevas que me envolve e dessa vez elas estão ainda mais tenebrosas.
Não era a voz do médico que eu estava ouvindo, pelo menos não do médico que me visitava uma vez por semana. A nova voz era ainda mais perigosa. Deus, ela me soou demoníaca, nunca senti tanto medo como durante aquela conversa.
- Ele é meu marido, doutor. Eu fiz um juramento de cuidar dele na saúde e na doença.
- Ele não está em condições de cumprir juramento nenhum e nem de julgar suas decisões. O que você vai fazer é o melhor para ele e para vocês. Todos vão descansar.
Descansar. Não precisava ouvir mais nada para saber o que significava aquela palavra.
Maldita doença que não me deixa chorar, maldita doença que não me deixa gritar de dor, ou de medo, ou de raiva, ou para pedir pela minha vida. Tentei com todas minhas forças abrir a boca ou meus olhos, não consegui nada e eles continuaram a conversa, alheios a minha agonia.
- Pense direitinho, dona Carmem. Ele nem sentirá dor com a injeção que eu aplicarei. Depois será fácil a gente arranjar um atestado de óbito. Uma pessoa no estado dele pode morrer a qualquer momento.
Não sei se ela pensou sobre aquilo. Rezo para que não tenha pensado, pois pior do que a morte, será saber que ela é a responsável pelo meu fim.
Seu eu pudesse ao menos chorar, tenho certeza de que ela se livraria dessas aves de mau-agouro.


III


Eu não percebo o tempo passando, mas acho que já faz muito tempo desde quando fui despertado por uma sentença de morte. Está nas mãos de minha esposa decidir o que fazer, minha vida está dependendo de uma decisão dela. Por um instante pensei que não houvesse nada a temer, que ela não me mataria de maneira nenhuma. Tinha esperança de que o amor ou o medo pudesse me proteger, mas agora não sei mais o que pensar. Desde quando ela entrou no meu quarto eu não sei mais o que pensar. Suas palavras me fizeram tremer de medo, e eu não consigo esquecer de nenhuma frase, temo que apenas essa lembrança seja capaz de dar cabo de mim.
- Se pelo menos você pudesse me mar um sinal de que ainda está aí... Carlos, eu te amo. Não quero lhe perder, mas não suporto olhar para essa cama e ver você como se estivesse morto. Tenho saudades de alguém que está perto e isso está me levando a loucura...
Deus, como eu gostaria de interromper aquela pausa apenas com um gemido, ou com um movimento de cabeça. Como eu gostaria de dar esperanças para minha esposa. Imagino que sua dor seja maior que a minha.
Depois de uns dez minutos de choro ela voltou a falar. Como eu gostaria que ela continuasse em silêncio. Como eu gostaria de manter a esperança de que ela não teria coragem de fazer o que o médico lhe aconselhava.
- O médico disse que você não vai sentir dor. Disse que será rápido e que finalmente nós dois teremos descanso. Eu não sei o que fazer... Se pelo menos você me dissesse o que quer...
Novas lágrimas, mas dessa vez eu não me compadeci dela. Estava dividido entre a raiva e a impotência. A dúvida dela é como uma sentença de morte para. Não posso culpá-la pelo que está preste a fazer, mas nem por isso eu aceito, mas nem por isso eu posso deixar de amaldiçoar o médico que sugeriu isso pra ela.
Preciso de um milagre, preciso de um sinal de vida.


IV


Não consigo odiar as pessoas que tramam a minha morte. Sei que eles fazem o que fazem porque não sabem que eu estou vivo. Às vezes nem eu mesmo sei se estou vivo. Não sinto quando me tocam, quando me beijam, quando me aplicam injeções. Como quando acham que estou com fome, bebo quando acham que eu tenho sede, não sei não quando faço minhas necessidades fisiológicas. A única coisa que faço por mim mesmo e tenho consciência disso é dormir. No mundo dos sonhos eu volto a viver e é por causa deles que eu ainda guardo esperança.
Lembro-me dos dias que vivi antes do derrame, lembro que eu queria fazer tantas viagens, ler tantos livros, ver tantos filmes, e tudo agora ficou pra trás. Tudo que me restou foi escutar, mas pararam de colocar musica para ouvir. Agora apenas lamentam meu estado. Cansaram de conversar com alguém que não pode responder. No começo minha esposa ainda falava sobre outros assuntos: contava-me sobre meus filhos, falava de planos para quando eu ficasse bom, fazia fofoca dos visinhos. Ela não sabia, mas naquele tempo eu me sentia mais vivo do que hoje.
Cansaram de mim. Cansaram do entrave que eu causo pra eles. Aos poucos se esqueceram de mim como pai, amigo, esposo e se lembram apenas de um moribundo que os impede de fazer festas, viagens, enfim, que está dificultando a vida deles.
Não posso culpar o médico de querer livrar minha família de mim, talvez ele ache que eu estou os adoecendo também.
É estranho eu me sentir culpado de estar vivo, é estranho eu querer justificar meu assassinato, mas como culpá-los? Eles não têm como saber que eu estou vivo. Se eu pudesse dormir por definitivamente não teria tanto medo da morte. Se eu perdesse minha audição talvez fosse mais fácil pra eu esquecer que ainda vivo, mas a surdez é uma dádiva que não me foi dada pela convalescença.
- A injeção não vai demorar muito tempo para fazer efeito. No máximo em um minuto ele vai estar descansando.
- Não posso matar meu marido.
- Já conversamos sobre isso. Ele está praticamente morto. Que vida tem uma pessoa que não pode pensar, nem sentir? Ele nem sabe que estamos aqui. Eu sei que a senhora o ama, mas ele não pode mais amar nem se sentir amado. Essa injeção será o meio de livrá-lo desse sofrimento.
- Não estou pronta... Hoje não.
- Bem, então amanhã eu ligo.
O silêncio que se seguiu foi pior que a sentença de morte do médico. Eu sabia que minha esposa estava no quarto porque de vez em quando ela cortava o silêncio com soluços. Entendi que ela não estava mais lutando, não havia mais conflito dentro dela. Aquelas lágrimas eram sua despedida.
Ainda estou vivo, mas agora eu rezo párea morrer antes do médico voltar. Não quero dar a minha esposa um possível remorso, não quero que ela assista a minha execução. Nunca foi tão difícil não poder gritar. Como eu gostaria de voltar à vida. Como eu gostaria pelo menos de poder me despedir de minha família e não ser enterrado como uma pessoa que estava morta há muito tempo.
Como eu gostaria de viver as últimas horas que me restam.



V


Estive mais uma vez na praia. Nunca o mar me pareceu tão bonita, nunca a água estava tão deliciosa. Eu tomei banho por tanto tempo que meu corpo estava todo vermelho. Antes de eu sair da água fui abraçado por braços há muito conhecidos. Era Carmem que parecia estar com muitas saudades de mim. Nunca um banho de mar foi tão erótico quanto naquela hora.
Depois dali passeamos por ruas incrivelmente limpas e arborizadas. Parecia que o mundo estava parado, que finalmente havia silêncio e paz nas nossas ruas. Não havia mendigos, nem policiais, nem bêbados, nem ninguém que por algum motivo pudesse quebrar a harmonia. Não parecia com as cidades brasileiras apesar de todos falar a nossa língua.
E nossa tarde se transformou em noite antes que pudéssemos perceber. E sem que percebêssemos nossas roupas estavam no chão e transávamos como há muito tempo não fazíamos. Nunca fomos tão ousados quanto naquela noite. Depois de gozarmos várias vezes dormimos abraçados, o sono mais repousante de nossas vidas.


VI


Depois do melhor desde quando eu estou paralisado nesta cama, acordei pela última vez.
Sei que não há mais o que fazer. Não posso esperar que minha esposa depois de todos os conflitos, depois de todo tempo que passou cuidando de mim sem saber se eu estou realmente vivo, resolva voltar atrás de sua decisão.
Pela primeira vez em muito tempo eu sei que meu quarto está cheio. Posso ouvir a voz de meus filhos, meus irmãos, meus amigos, minha esposa e até mesmo do médico.
Cada um falou palavras bonitas de despedida. A cena é patética. Eles sabem que estou vivo e se despedem para poder me matar em paz. Acho que essa cena repugnaria qualquer carrasco.
Se eu pudesse rir ou chorar, eu estaria rindo. A ironia é o único modo de responder a altura. No entanto eu os entendo. O que falar para alguém que não se sabe se é capaz de ouvir ou entender o que está se passando? Eles devem estar mais constrangidos do que eu.
- Adeus, meu amor. Falou minha esposa, encerrando toda a cessão de despedida. E como num milagre, eu senti seu beijo em minha boca. Senti o gosto de suas lágrimas nos lábios. Ao menos isso não me foi negado no último momento. Se os outros sentidos voltassem também.
Mas aquele beijo foi minha última sensação boa na vida. Logo em seguida ouvi a voz do médico.
- Podem sair. Ele não queria testemunha de seu ato.
- Eu vou ficar. Respondeu minha mulher com a voz trêmula.
Ela segura minha mão há alguns momentos. Sei que ela está tremendo. Posso sentir isso. Parece que na hora da morte meus sentidos voltaram aos poucos para que eu possa desfrutar mais plenamente desse último momento.
- Está pronta, Dona Carmem.
- Estou.
Eu não estou. Mas eles não podem saber disso agora. Jamais poderão.
- Vá com Deus, meu amor.
Fique com Ele meu amor. Eu sei que você não tem culpa do que faz. Eu te amo.
Sinto a agulha perfurando minha veia. Minha última sensação afinal foi de dor.










Jadson Buarque


Maceió, 20 de abril de 2005.
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