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Contos-->O TOCADOR DE ACORDEÃO -- 01/05/2005 - 19:40 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Custódio fazia baloiçar o cadeirão, balançando com um pé, ao mesmo tempo que pensativamente olhava para a cadeira em frente, onde repousava o seu velho acordeão.
O sol punha-se e uma brisa fresca invadia a sala daquela casa de província, mobilada com móveis sóbrios de madeira escura e robusta. Duas estantes cobriam inteiramente uma das paredes, onde se viam inúmeras taças, placas comemorativas e molduras com fotografias e diplomas. No outro extremo da sala, uma mesa comprida com pratos e talheres para uma só pessoa.


Custódio era filho e neto de pequenos agricultores que, embora sem fortuna, tinham sempre ganho o suficiente para viver com certo desafogo. Todos já tinham morrido e ele, por motivos que veremos a seguir, não seguiu o mesmo caminho. Vendeu todas as terras que os pais lhe tinham deixado, ficando apenas com a casa, que constituía todo o seu mundo e era o seu refúgio.
Mal tinha completado a instrução primária quando o avô Augusto o começou a ensinar a tocar acordeão. Apaixonou-se de tal modo pela música que passava os dias a tocar sob o olhar atento do avô. Nunca mais pensou no amanho das terras nem tão pouco nos estudos.
Em breve dominava o instrumento com indesmentível mestria e começou a estar presente em todas as festas, feiras e romarias que se realizavam muitos quilómetros ao redor.
Aproveitando umas férias do avô nas cercanias da Serra da Estrela, e sabendo que iria encontrar um mestre de acordeão com quem poderia aprender muito mais, acompanhou-o. Se o mestre ficou encantado com o aluno, este não perdia pitada dos ensinamentos que ele lhe transmitia.
Passado um mês nem parecia o mesmo. Sentia-se outro, muito mais seguro de si. Começou a percorrer o país, apresentando-se em salas de espectáculo da província com assinalável êxito. Começaram a pagar-lhe bom dinheiro e, certa noite, esteve mais de três horas seguidas num palco, tocando o seu reportório.
Os pais dividiam-se entre o orgulho de saber que ele era exímio naquilo que fazia e a tristeza de pensar que quando morressem aquelas terras ficariam sem ninguém para as cultivar.
Os emigrantes que regressavam a Portugal, definitivamente ou de férias, começaram a divulgar o seu nome e a sua arte junto das comunidades portuguesas no estrangeiro e foi assim que Custódio começou a percorrer o Mundo. Foi a França, à Alemanha e ao Luxemburgo. Um conhecido programa de televisão convidou-o para uma entrevista seguida de actuação e foi um êxito. Via-se que Custódio gostava do que fazia e era um encanto vê-lo tocar. Já não tinha aquela particularidade de ser considerado um menino-prodígio, mas ganhara um raro virtuosismo que a todos encantava.
Em breve os convites começaram a chover e em vários Continentes quiseram vê-lo actuar. Esteve no Brasil e na Venezuela, em Angola e em Moçambique. Aceitou com agrado e até exaltação dois contratos que o levaram a Macau e a Timor. Confidenciou então, a alguns amigos, que para actuar em Timor até seria capaz de pagar, de tal modo admirava aquele pequeno povo que se batera com estoicismo contra o ocupante nunca esquecendo os laços com Portugal.
Primeiro morreu-lhe o avô (estava ele na África do Sul) e mais tarde os pais. Ficou só mas com uma brilhante carreira pela frente.
Quando tomou conhecimento da morte do avô Augusto tinha acabado de actuar numa grande sala de Joanesburgo. Num repente, voltou ao palco e, com a voz embargada pela emoção, anunciou que ia tocar a primeira música que o avô lhe ensinara. Tocou-a como nunca o fizera. O público de pé aplaudiu-o durante intermináveis minutos. Quando a sala se aquietou, Custódio disse: - Os vossos aplausos dedico-os ao meu avô de quem me anunciaram agora a morte. Foi ele que me ensinou quase tudo o que sei!
D. Florência, uma velha amiga de sua mãe, tratava-lhe da casa e fazia-lhe a comida.
Custódio ganhava bastante com os seus espectáculos e já tinha vários discos publicados. Não lhe faltavam contratos. Tudo parecia correr bem. Até que um dia...
Estava num ensaio quando sentiu uma dor inesperada e muito aguda que lhe fez perder a força nas pernas. Caiu e mal se pôde soerguer. Não se conseguia endireitar. Levaram-no para o hospital que ainda ficava longe. Logo lhe foi diagnosticado um grave problema de coluna. Foram-lhe receitados vários medicamentos e recomendaram-lhe que não tocasse acordeão, pois o seu peso poderia piorar a situação. Ainda fez alguns espectáculos tocando sentado mas, como um mal nunca vem só, os exames complementares que lhe foram feitos posteriormente trouxeram-lhe notícias ainda mais negras: atingira-o uma doença irreversível que lhe iria provocar o atrofiamento de todos os músculos. Interdição absoluta de tocar.
Nunca tendo casado, sem família, recebendo unicamente a visita diária de D. Florência, Custódio começou a definhar. Passava os dias sentado a olhar o seu acordeão. Mal podia andar e deslocava-se agarrado a um cajado que tinha pertencido ao seu avô Augusto. Raramente saía. Começou a sentir dificuldade em respirar e viu claramente que a sua vida não duraria muito.
Sentia a falta dos aplausos do público e gostaria de voltar a tocar, porém já pouca força tinha nas mãos e até lhe custava comer. A vida tornava-se insuportável. Cada vez mais.


Uma luzinha brilhou-lhe nos olhos e, muito a custo, levantou-se agarrado ao cajado. Arrastou-se até junto da mesa, afastou os pratos e talheres e sentou-se. Puxou para si uma folha de papel branco que estava próxima e, com um lápis, escreveu penosamente algumas palavras. Quando acabou, enxugou com as costas da mão as gotas de suor que lhe escorriam pela fronte e leu o que acabara de escrever. Um sorriso aflorou-lhe aos lábios. Voltou para o cadeirão e adormeceu.
Quando D. Florência chegou, de manhã cedo como todos os dias, estranhou que ele não se tivesse deitado. Chamou-o, tocou-lhe, abanou-o mas ele não reagiu. – Senhor Custódio, não me assuste! Mas ele já partira para a viagem sem regresso.
D. Florência benzeu-se, rezou uma pequena oração e olhou para a mesa no outro extremo da sala. Custódio nem comera. Viu uma folha de papel em frente da cadeira desarrumada. Aproximou-se e leu uma sequência de palavras com letras enormes e garatujadas certamente com grande esforço: «Enterrem o acordeão junto do meu corpo. Quero tocar para os anjos! Hei-de voltar a ser feliz».
Uma lágrima deslizou, serpenteando lentamente, pela face cheia de rugas da velha senhora.


NB: - 2º Prémio nos IV Jogos Florais «Lagos 2005»


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