Apenas por cálculo matutado no fundo dos tempos e baseado na incontornável evolução da linguagem através dos séculos, presumidos elementos a que adjuntarei minha imaginação, intento recuar à época em que as duas margens na foz do Rio Douro ainda não tinham a designação de Portus, a direita, e Calle, a esquerda. Como hoje bem se sabe e é historicamente admitido, de Portus e de Calle adveio e se formou o nome do meu querido país: Portugal.
Ora, há muito tempo pois, na margem direita da foz do rio Douro, existiria uma intensa azáfama entre pessoas, barcos e mercadorias. Haveria porventura um daqueles enérgicos trabalhadores, rude e de porte atlético, a quem caberia o comando directo das diversas e pesadas tarefas. Como decerto era conhecidíssimo no cais e muito falado nos arredores, os habitantes daquele local e lugares próximos, chamar-lhe-iam, a corresponder à situação e ao ofício, Portus. Portus isto, Portus aquilo, vai ao Portus, o Portus é que sabe, enfim, o indivíduo estaria assim identificado.
Terá sucedido que o referido Portus, nas suas constantes idas e voltas à outra margem, relacionou-se a pouco e pouco com uma robusta e bonita donzela do lado de lá, a ponto de apaixonar-se perdidamente por tão imperdível regalo. Assim, logo que a noite se adensasse, embarcava no seu pequeno caíco e demandava a outra margem, de encontro a um sítio previamente combinado com a sua amada. Todavia, para que tudo decorresse e ficasse bem durante sua ausência, recomendava a um seu dilecto e fiel amigo que tomasse conta da vigilância aos armazéns do cais, deixando inclusive ordens para que fosse imediatamente apelado se entretanto ocorresse qualquer anomalia grave.
Num dado princípio de noite, estava o Portus no outro lado a fruir tranquilamente o apetitoso corpo da sua namorada, uns inesperados salteadores surgiram a saquear mercadorias aonde o seu amigo estava de guarda. Este, não hesitando um só segundo, correu em pânico para a borda do rio e, de mãos em concha ao redor da boca, gritou ao longo do calmo dorso das águas: Portus... Portus... Portuuuus...
Ora, estando Portus a consumar deliciosamente, nesse mesmo instante, o excelso orgasmo, perante os repetidos apelos do amigo, respondeu, berrando aflitivamente enquanto descia do esplendor dos céus: Calle... Calee... Calleeee... (Cála-te)
Daí, meus caros, dos ouvidos às vozes dos que viviam nas redondezas, Portus e Calle instalaram-se na alma e no corpo das gentes para, uns quantos séculos adiante, darem enfim à luz o nome de Portugal. Que bonito menino !...
António Torre da Guia
O Lusineiro |