Um longo silêncio estava ali, sentado no sofá da sala, bem entre eles, fumando. Mas o que estava incomodando mesmo era a fumaça indolor do cigarro. Fazia arder os olhos, irritava o nariz, impregnava nos cabelos.
Ele acende um cigarro e oferece outro pra ela:
- Eu devia parar...parar de tentar consertar minha vida anterior; parar de fingir que não vejo seu olhar rancoroso, que não ouço as entrelinhas de sua mágoa em cada frase; parar de fingir que está-tudo-bem-somos-adultos; parar de fingir que essa é uma visita normal; parar de dizer que não significa nada o fato de eu ter passado quase um ano com você;
O silêncio dá uma longa tragada.
- Mas...como tá teu novo apê? queria mesmo é saber com quem tu tá dormindo; pra cama de quem tu foi depois que me largou; pra quem tu anda recitando Valéry em seu francês atropelado; se tu se sente segura com o abraço grande dele; se tu ainda olha com cara de sexo quando toca Portishead; se tu veio aqui dizer que se arrepende de tudo e quer voltar, pra eu poder me fazer de difícil, tu chorar arrependida, eu olhar pra ti inclinado a (mas indeciso), e acabar dizendo que..;
O silêncio vira o rosto junto com ele, e fica esperando a resposta dela. Solta a fumaça pelo nariz.
- Bem, bem. Até já acostumei com o Dirceu. O Dirceu é o gato do...não consigo dizer o nome do outro; ia parecer uma provocação; ia parecer que foi muito fácil pra mim; ia parecer que não estou aqui só pra pegar minhas coisas; que esse é na verdade meu final com ele; nossa última dança, atravessado e com pisões nos pés; - Posso pegar os meus CDs?..diga que não,que eu sou uma vaca, uma puta, que me odeia; mostre que você ainda acredita que alguma coisa vai acontecer; que esse final melancólico e de poucas palavras não é O final; me faça duvidar das minhas certezas, me faça gritar com você, reafirmar minhas dúvidas; não faça parecer que você também desistiu; que é tão fácil;
O silêncio derruba cinza no sofá e limpa rápido com a mão, antes que algum dos dois perceba.
- Claro, claro. Afinal foi pra isso que tu veio, não é mesmo?..foi pra contar em quantos pedaços eu estou no chão, não é; se o vento já me varreu pra longe, não é; pra ver se estou na minha rotina de estar-na-merda, não é; pra levar embora o meu disco do Joy Divison que tu comprou pra gente; NÃO!, o Joy Division você não vai levar, você nem ouve esse disco, esse é o ponto final, esse disco tu não leva; ouvi ele o dia todo, todo dia desde que tu foi embora, sempre esperando que tu chegasse antes de “Love Will Tears Us Apart”; esse disco é meu, sou eu, é parte de mim, é minha taxa-solidão; tu que vá à merda, o Joy Division fica;
O Silêncio se levanta e vai fumar na sacada, tentando ouvir os grilos, cai sacada abaixo. Levanta, olha pra cima. Bate a roupa. Acende outro cigarro e senta na escada do prédio. Ela, diante da longa estante de CDs, abre a caixa de papelão, pega um deles.
- Posso levar o Joy Division?
- Claro, foi tu que comprou mesmo... |