Usina de Letras
Usina de Letras
158 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62213 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13568)

Frases (50604)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140798)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O encontro -- 19/05/2005 - 18:33 (Luca Xavier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O ENCONTRO


A luz, com suas finíssimas lâminas brilhantes ocupa frestas que revelam as imperfeições da minha janela e mirando meus olhos e têmporas, acirram a dor de cabeça que ininterrupta aflingiu-me na madrugada e persiste agora, ao nascer do sol. No quarto ao lado, meu vizinho Samuel com a sua habitual discrição, não passa incólume em seu despertar.
Amaldiçôo o dia que se inicia. Não faz parte do meu repertório de automotivação o enaltecimento do ar puro, do sol, do frescor ou beleza da manhã. Para mim, estas supostas dádivas da natureza ilustram a canalhice do universo no trato com as criaturinhas idiotas que insistem em dele ser parte integrante.
Rolo na cama por algum tempo. Minutos, horas, não sei precisar. Meu pessimismo é auspicioso. Samuel aumenta o volume de suas ações. Turco desgraçado. Não. Judeu desgraçado. Procuro o analgésico sob o criado esquecendo que já o consumi durante a madrugada. O relógio parece marcar 9:30 horas. Está distante, sobre a mesa do telefone. Às 11:00 tenho encontro com um cliente. Para fazer um serviço que despontou como sonho profissional e se tornou no meu suplício diário.
Após um relutante banho, ainda que a dor de cabeça permaneça, me sinto melhor. As fragrâncias de shampoo e sabonete revitalizam o espírito. Engraçado que ninguém tenha mencionado isso antes sendo algo tão evidente. Bem, talvez por ser tão evidente.
Dirijo-me a padaria no outro lado da rua, não sem antes dar uma olhada no meu vizinho. Ele me olha sem nenhum interesse, cumprimenta e acrescenta que eu fiz muito barulho durante a noite, acabando por perturbar o seu sono. Retribuo o cumprimento e concordo com a cabeça. São os males dos quartos contíguos.
Cruzando a rua deparo com a padaria exalando o característico cheiro de café e pães assados. Por alguma razão que ainda não sei expressar, o cheiro sempre me remete a algo melancólico no passado. Tomo um café com algumas gotas de leite e como um pão com manteiga procurando me manter alheio às conversas ao lado protagonizadas por um guarda vigilante e o dono da padaria.
Detesto as narrativas dissecadas em padarias. Geralmente são de um tom egoísta onde quem as apresenta está imensamente preocupado em que o mundo saiba sobre os seus problemas e indignações. Não me impressiona se são lamentos manifestados pela camada marginal da sociedade, seja o vigia noturno, a arrumadeira, o motorista de táxi ou porteiro de hotel. São todas melancólicas e desagradáveis de ouvir. Não quer dizer que eu não saiba ouvir, ou seja insensível e preconceituoso para com este tipo de pessoas. Simplesmente não me interessa as coisas que falam, precisamente, numa padaria nas primeiras horas da manhã. Porque nessas circunstâncias invariavelmente falarão da alta dos preços, do salário baixo, do governo e num dia melhor, futebol. Bem, talvez eu tenha preconceito para com este tipo de pessoas.
Quando subo no ônibus em direção ao centro já são 10:00 horas. Vem-me a cabeça as imagens de um filme visto na noite passada. A personagem depois de humilhada por toda uma cidade se revela filha de um poderoso mafioso. No final do filme, exercitando uma sofisticada forma de vingança e já usufruindo o poder do pai, a personagem de algum modo conclui que para o bem da humanidade aquela cidade e seus habitantes devem desaparecer. Em especial, um detalhe me impressionou. Ao dar a ordem para a execução dos habitantes, ela alerta que em determinada casa existem cinco crianças. Quer que elas sejam executadas diante da mãe. O gangster que faz o serviço finaliza a matança colocando a metralhadora sobre o peito de um bebê disparando em seguida. Quando lembro desta cena sinto um imenso desconforto que se agrava por questões que naturalmente se insinuam: Será que o executor, mero figurante no filme, em sua estupenda crueldade experimentou ou experimentará algum escrúpulo pelo inominado ato praticado? Será que nos incontáveis assassinatos que já praticara seus sentimentos humanos foram de tal modo embrutecidos pela sua rotina sangrenta a ponto de tudo o mais, em se tratando de tirar vidas, não lhe despertar a menor centelha de emoção?
A arte chocando buscando o efeito da reflexão. Ou ainda, sendo arte, chocando buscando o efeito de chocar.
Freqüentemente, minha percepção sobre fatos desta natureza, ainda que exprimidos de forma artística, acirra minha descrença na índole humana. E sequer cogito a maldade como qualidade intrínseca a esta índole. Para mim é suficiente constatar a absoluta incapacidade do homem de permanentemente fazer o bem ao seu semelhante.
Para meu azar, quando desço do ônibus, começa a cair uma chuva fina e fria. Não estou com disposição suficiente para correr ou buscar um abrigo. Ainda sob o efeito de minha indignação com a raça humana me penitencio recebendo inteiramente a chuva. Mas a chuva parece ser insuficiente para lavar minhas angústias. Quando chego no endereço do cliente, um prédio bonito de uns 10 andares, estou ensopado, gelado e profundamente irritado com minha estupidez. Mas, não pretendo voltar aqui outra vez sob o mesmo pretexto. Espero os minutos que restam para as 11:00, postando-me no hall de entrada, longe do porteiro e próximo ao elevador. Ainda estou muito molhado quando me dirijo à sala cujo número anotei em um papel que retiro do bolso da camisa. A secretária que me atende como era de se esperar não dissimula seu descontentamento com a minha presença.
“Por favor, Senhor Marco Aurélio?” Capricho na educação, apesar de ter consciência que no meu estado seria mais coerente dizer: “Chama a porra do Marco Aurélio, vadia!” Ela me olha de cima em baixo, típica feição clichê de quem está sendo importunada.
“Quem devo anunciar?” Pergunta com um tom que surpreendentemente não é o típico das secretárias. Uma voz grossa demais para mulher e áspera demais para uma secretária.
“Maximiliano. Max. Ele está me esperando”.
O homem que me observava do outro lado de uma mesa suntuosa não parecia em absoluto ser o mesmo que um dia antes falara comigo ao telefone. O rosto delgado, cabelos grisalhos e volumosos. Uma boca desprovida de contornos que se resumia a uma linha desenhada abaixo do nariz. Olhos quase tristes, marcadamente inexpressivos e sem brilho.
Do mesmo modo, imagino que a minha imagem também não corresponda àquela descrita ao telefone, ainda mais encharcada pela chuva. Nesse ramo, o aspecto físico é fundamental, sendo suficiente que, para o sucesso do empreendimento, não haja uma discrepância muito acentuada entre a imagem fornecida pelo telefone ou anúncio de jornal e a verdadeira. Tento ser o mais fidedigno possível: “Moreno, 1,80m, cabelos e olhos muito pretos, magro, malhado, sem barriga e bonito”. Tenho todos estes atributos, inclusive no que toca a definição de bonito. Sou realmente um cara bonito. Bem, não sou exatamente um cara malhado, mas não há em mim qualquer protuberância de gordura ou flacidez evidente. No entanto, a entender a composição de tais atributos, não sei, sinceramente como isso se apresenta para a pessoa que primeiro idealizou em sua mente uma imagem e assim a desejou para aquela que subitamente desponta à luz da realidade. Por minhas experiências, a imaginação é sempre mais primorosa esteticamente do que a realidade.
“Você é exatamente como imaginei” ele disse com um sorriso, me surpreendendo, mas não muito. É que intimamente me lembro de ter usado algo semelhante em outros encontros, mentindo em diversas situações como forma de manter a motivação e porque, visto como um elogio, esta colocação ajudava a amenizar o clima.
“Legal” Repliquei. Disse-me em seguida que ao contrário do combinado, eu teria que esperar um pouco mais porque ele estava esperando uma ligação urgente. “Tudo bem” mas expliquei que o tempo seria cobrado e embutido no preço da hora porque afinal de contas, no meu caso, ela vale dinheiro.
Se antes eu havia mencionado que este serviço era um sonho profissional me referia àquelas ambições juvenis de poder desfrutar de muitas mulheres como um autêntico garanhão do sexo e, de preferência, ainda ser pago para isso. A princípio me era fascinante a idéia de ser ator pornô. Transando com belas mulheres dezenas de vezes e ainda recebendo algum. Parecia-me o emprego ideal. Mas, amadurecendo percebi que o fato de estar sendo exposto a meio mundo em variados atos de devassidão não era, em absoluto, uma forma atraente de ganhar a vida.
Bem, mas eu poderia fazer isso privativamente àquelas mulheres que quisessem e pagassem e a prostituição não me pareceu naquele momento algo tão moralmente reprovável. No meu caso a opção se mostrou com muito glamour e eu não hesitei em adotá-la.
Mas, em verdade, nunca vivi o sonho da juventude. As mulheres que cruzei não eram belas ou sensuais. Em sua maioria, eram solteironas solitárias e quase sempre amargas. Outras tristes e envergonhadas, enternecidas por uma autocomplacência que trazia lágrimas e um fardo de culpa que se agigantava após o ato sexual tornando minha presença insuportável para elas.
Poucas eram interessantes. Depois, por necessidade de dinheiro, comecei a atender homens. E aqui está a razão do meu suplício diário. Pode parecer um exagero homofóbico, mas me afeta muito até hoje. De qualquer modo rende uma boa grana e o asco que era quase insuperável no início transmutou-se numa atitude resignada e tolerável.
Depois de falar ao telefone por uns 20 minutos, o sr Marco Aurélio e eu saímos. A coisa toda, em relação aos caras, de modo geral não variava muito, fosse num motel ou em residências. Ainda que muitos ensaiassem uma performance inicial apresentando manifestações mais ousadas de suas fantasias, eu nunca me permiti compartilhá-las, mesmo correndo o risco de decepcioná-los e eventualmente perder o cliente. Tirava a roupa e procurava o mais rapidamente realizar o serviço.
Um hora e meia depois, ele me deixou em um bar no centro da cidade. Parecia envergonhado e louco para se ver livre de mim. Sim, seus demônios interiores deviam estar gargalhando e lembrando a ele que sua família o esperava no fim da tarde. O que teríamos a sua espera?Talvez uma mulher solícita e um pouco decepcionada pelas suas últimas performances, mas ainda crente no poder de sedução feminino? Quem sabe um ou dois filhos ávidos por qualquer distração ligeira que ele lhes pudesse oferecer? Ou então uma mãe afetuosa a sua espera que anseia por uma nora digna de seu filho e do seu sucesso profissional, para lhe dar netos gordos e educados? Porém, todos, muito distantes do seu real universo sexual e parecendo prenunciar uma tragédia pessoal em mais um lar familiar. Mas a vida é assim. Tanto melhor que ele pode aproveitar o resto do dia e mergulhar nos seus afazeres profissionais amenizando um pouco seu conflito interior, do mesmo modo que eu farei, sem, é claro, o martírio de consciência.
No Bar, busquei uma das mesas situadas na calçada. Acho sempre oportuno beber uma cerveja antes do almoço. Liguei o celular e me coloquei de volta ao trabalho. Uma música estridente e desagradável tocava ao fundo.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui