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Contos-->Palavras, presas -- 15/06/2005 - 22:52 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Engana-se quem diz que a palavra falada é valiosa. Que instituição baseada em oratória e retórica obteve êxito ao longo da história? Política? Religião? Justiça?O caos do mundo indica que o melhor é não falar. Ao cabo, tudo o que você disser será usado contra você nalgum tribunal, durante um processo instaurado por fórum desconhecido. Como em Kafka. Até aqui, você pode pensar que essa é a minha opinião, como sugere o cabeçalho acima; mas nada tenho a ver com tal teoria. Meu pecado está apenas em ocupar o papel incômodo de narrador ubíquo. As idéias descritas guiam a vida de um homem aparentemente sofrido. Ao menos guiavam quando ele era capaz de formular pensamentos. Refiro-me ao andarilho que cruzou o seu caminho ontem, na avenida. Aquele mesmo, escondido atrás das barbas imundas e das roupas em trapos de um único marrom. Ah, você não percebeu! Evidente que não. Tipos assim não causam mais espanto a ninguém, já são parte da paisagem, como um poste, uma lata de lixo ou um cachorro morto no asfalto quente. Mais discreto é esse que vive sem usar o direito à palavra. Em sua atual condição de homem sem condição nenhuma, não nos permite afirmar que daquela boca, hoje cerrada, já pularam gritos de ordem, palavras de amor, urros de dor.
Agora, vive ele com os brados em cativeiro voluntário. Prisão de própria vontade, o pior tipo de jaula. Quando estamos encarcerados por uma força externa maior que a nossa, resta-nos a ilusão da resistência, a fantasia da luta até as últimas forças; em tal estado, morremos para conseguir uma liberdade que julgamos real e, se temos o infortúnio de conseguí-la antes de perecer, descobrimos que não somos livres nunca. Sempre haverá um algoz a nos impedir de algo. Algozes devem servir para isso mesmo. Algozes: aqueles que torturam alguém com algo. Se o carrasco de fora não há e nossa luta é com o vilão de dentro – valha-nos algum deus! – não há chance de fuga. A priori, porque não se quer; depois, porque, mesmo querendo, não se pode. Ninguém foge de sua própria sombra.
Está, então, o andarilho estancando suas próprias palavras. Há doze anos não emite som que não seja tosse. Sílabas só pululam em sua mente; apenas sílabas, pois as palavras, não as consegue mais nem relembrar. As orações foram exterminadas de sua cabeça no quinto ano de abstinência. Períodos deixaram de se costurar naquela mente cansada meses após travar em definitivo a língua.
Há quem diga que o ser humano pensa com as palavras que conhece. Se assim é, o andarilho não mais pensa. Ao menos não pensa por meio de vocábulos. Apenas imagina, habilidade que solicita exclusivamente imagens; e há um arquivo riquíssimo de imagens na cabeça do andarilho. Você, dirigindo seu carro bi-combustível, nunca poderá supor como são felizes os fotogramas íntimos desse maltrapilho que ladeia o automóvel na rotatória que contorna o túnel. Cenas da vida com uma família: festas de aniversário, férias na praia, excursão para a Europa. Ficaria você perplexo com os registros visuais das passeatas nos anos setentas. Como era valente aquele moço! A faculdade, a formatura, o emprego, os amigos. Tudo ali, salvo sem índice. Todas as mulheres que os olhos do andarilho registraram também estão arquivadas. Olhe com cuidado, há um arquivo maior nesse setor. Um grande álbum num único nome de mulher. Que nome é esse? Triste... Nem o próprio amante pode nos dizer. Por não mais recitar o nome da pessoa amada, terminou por esquecer que nome tinha ela. É incapaz de ler a etiqueta em seu registro mental. Mas são lindas as muitas imagens guardadas com o sorriso dela. Bisbilhotando, nós que ainda somos escravos da palavra, podemos traduzir cada cena em seus correspondentes simbólicos: um beijo, uma pose, um baile, uma noite, um brinde, uma casa, uma festa, um carro, uma seresta, uma lua, uma peça, uma viagem, uma semana, uma saudade, uma porta, um quarto, um capuz, uma arma, um grito, um tiro, um tombo, uma sirene, um choro, um médico, uma chance, uma reza, uma reza, uma reza, uma notícia, um fim, uma cova, um pesadelo.
Desavisados somos nós! eu e você em seu volante revestido couro. Iludidos com belas imagens, penetramos no canto mais dolorido da vida do andarilho que não fala. Não percebeu? Em meio às imagens que traduzimos, uma tragédia se desenhou. O hoje mudo homem já usou a força do verbo e pediu ajuda divina para a mulher que amava! Peça que será atendido! Pediu três vezes! Rezou pela vida da pessoa a quem dissera as palavras mais doces que o dicionário guarda. Ninguém conseguiu ouvi-lo. Como presas, as palavras perfuraram seu coração. Agora, presas, as sílabas não mais o machucam. Há doze anos o andarilho tem apenas imagens. Nem se sabe andarilho, mendigo, maltrapilho, sem-teto, indigente, vagabundo, desocupado. Não sabe ao menos o nome que tem, esse mesmo apenas mais uma palavra esquecida. Você, trancado em seu automóvel financiado que já vai longe na avenida, pode pensar que esse homem é triste. Mas tristeza e alegria não seriam apenas mais duas palavras para se esquecer?

...............
Jefferson Cassiano é Publicitário e professor de redação, ia dizer algo, mas não lembra o que era.


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