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Contos-->A Volta Para Casa -- 02/01/2001 - 12:03 (Guilherme Chiurciu Alpendre) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Volta Para Casa

Estava andando ali, desviando do sol, procurando sempre a sombra fresca das árvores, que de frescas não tinham nada. Era a rua Xavier de Toledo, bem em frente à entrada do metrô Anhangabaú, num dia incomumente ensolarado. Vi o ônibus da linha 8618 parado no trânsito, e o sol refletindo na lataria branca. Não era a melhor opção para mim, mas estava ao meu lado, parado, com a porta aberta. Não tive dúvidas, me despedi de minha amiga que tão gentilmente me havia acompanhado até ali naquela excursão esdrúxula naquele dia quente, e, com um pulinho, subi no ônibus.

Como sempre, pensei em como os degraus dos ônibus são altos, e na tamanha dificuldade que a maioria dos aposentados têm em subir no meio de transporte que lhes é gratuito. Peguei o meu porta-níqueis, como minha avó costumava dizer, e entreguei ao cobrador R$ 1,20, apesar de eu ter o dinheiro trocado. É uma pequena obsessão minha, sempre dar R$ 1,20 no ônibus para receber uma moeda de 5 centavos de troco. Talvez seja mesmo loucura, mas eu coleciono moedas de 5 centavos, guardo-as todas em duas pequenas gavetinhas de minha escrivaninha.

Como era de se supor, recebi a minha moedinha de troco. Coloquei-a feliz junto das outras no porta-níqueis e empurrei a roleta, estreita demais para cidadãos obesos. Me sentei num dos muitos assentos vazios do ônibus, bem ao lado da porta de desembarque, do lado esquerdo. Olhando pelo vidro estranhamente limpo do ônibus, vi o resultado da recente chuva de papel picado promovida pelos trabalhadores contentes pelo último dia útil do milênio. Apesar da sujeira, não pude deixar de sorrir.

O ônibus continuou sua viagem, contornando o Teatro Municipal. Parou logo depois: um mocinho queria descer. Estranho. Eu jamais pagaria um ônibus para andar um único ponto. Mas, ele devia ter seus motivos. O ônibus continuou seu caminho, já na Av. São João. Lendária São João, podre São João. Olhava pelo vidro sem interesse, sem fixar os olhos num único ponto, vendo as fachadas sujas e depredadas quando ouço um casal no banco da frente comentar: “Lembra, ali era aquele cinema bonito... Como era o nome? Ah, isso mesmo, Comodoro. Pena que não funciona mais. Nem esse, nem o Marrocos, nem o Espacial...”. A mocinha começou a falar mais baixo, e o ruído superou a sua voz. Não ouvi mais palavra.

Em mim ficou o gostinho doce e ao mesmo tempo amargo da nostalgia. Nostalgia de um tempo que não vivi, saudades de algo que não conheci, mas que, por alguma razão, me parecia tão próximo.

O ônibus continuou seu caminho, ainda pela Av. São João. Parou num semáforo, e eu comecei a ler as informações contidas atrás de cada Lp. Tinha ido ao centro comprar Lps, uma de minhas grandes paixões. Lia o verso de um Lp da Édith Piaf, de 1951, americano. Contava um pouquinho sobre cada música, de um jeito meloso e superficial demais. O ônibus voltou a andar. Ao passar pelo cruzamento, o sol forte, incomumente forte, me queimou a pele e incomodou os olhos, obrigando-me a franzir a testa e sofrer submisso a dor de cabeça conseqüente. Mas, não haviam passado 3 segundos de sol no rosto, ergui quase que involuntariamente, a mão com o Lp de 49 anos, 10 polegadas, e tapei com ele o sol. A sombra projetou-se no meu rosto, mas o sol continuava a queimar a pele dos braços. E queimava mesmo. O calor dentro do ônibus era quase insuportável. Passado o cruzamento, o sol ficou detrás dos edifícios, e não me incomodou mais. Baixei de novo o Lp para novamente erguê-lo no outro cruzamento. E, não sei porque, o ônibus parou bem ali, no cruzamento, ou perto o suficiente dele para que o sol não mais fosse escondido pelos edifícios velhos. Fiquei ali, com o braço levantado, cobrindo o sol do rosto e observando o interior do ônibus iluminado, quase que assediado pela luz forte.

Não sei porque, mas era como se, ali, naquele momento, me desse conta de que existia. O calor quase sufocante, o sol incomodando, mas o interior do ônibus iluminado me dava a sensação de que eu fazia parte do mundo, e de que o mundo fazia parte de mim.

Aquele ônibus, naquele instante, me fez sentir vivo. Mas foi algo efêmero, efêmero demais para ser descrito com palavras. O ônibus voltou a andar, o sol voltou a incomodar, mas eu não mais li o verso dos Lps. Agora olhava maravilhado pela janela do 8618 – Pq. Maria Domitila, e sentia cada detalhe do mundo.

Só depois de muito tempo de ônibus, mais de meia hora, é que notei que levava comigo os óculos escuros. Mas não me lamentei por não os ter colocado antes. Não mesmo.
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