Por meados de Dezembro de 1966, há exactamente 39 anos, o engenheiro Gustavo Cudell, meu patrão e pessoa de excepcional craveira, andava danado comigo. Eu tinha estabelecido contrato com uma firma concorrente e despedi-me com saída prevista para o fim do ano.
Depois do almoço, eu reentrara como habitualmente a trabalhar às 15 horas e dei com ele a procurar uns papeis no meu gabinete. Ao ver-me, disse de rompante, azedo:
- Não sei o que o senhor Torre da Guia ainda anda aqui a fazer...
- Mas, senhor engenheiro, ficou combinado que trabalharei até 31 de Dezembro...
- Não importa. Peça ao Farinha que faça contas consigo e lhe pague o mês por inteiro. Disseram-me que vai trabalhar para a Textimpex e eu nem quero pensar nisso.
Bem... Recuei para o corredor e voltei-lhe as costas sem nada dizer. Saí da firma sem falar com ninguém e nunca mais lá voltei. Sequer cheguei a receber o meu ordenado.
Nessa tarde, para acalmar e desanuviar a tensão, resolvi ir ao cinema. Fui ao cinema Batalha ver o interessantíssimo filme "Se o meu carro falasse". Era assim o seu título na versão portuguesa.
Durante a sessão, reparei que a fita, por inadvertido lapso do projeccionista, estava do lado contrário. O carro, o Herbie, tinha o número 53, mas apresentava-o invertido, o 3 no lugar do 5 e vice-versa. Parecia o 35. Como as legendas eram projectadas à parte, ninguém ligou importância à pequena anomalia. O filme, fora esse pormenor, via-se bem na mesma.
Logo que saí do cinema, ao atravessar a passadeira, um eléctrico que abrandou, para me dar passagem, tinha o nº. 35. Logo adiante, ao dirigir-me à praça de táxis, para ir pra casa, a viatura que tomei apresentava como número de matrícula o AA - 35 - 35. No banco de trás, enquanto era transportado, comecei a magicar com o diacho do número e disse para comigo: apre, o 35 parece que me quer dizer alguma coisa...
Quando me apeei do táxi, à porta de minha casa, a mensagem surgiu incontornável e ligou tudo. Eu residia no nº. 105, mas logo por baixo, num pequeno quadradinho em mármore, estava gravado a preto: foi o 53, indicação que eu vira indiferentemente milhares de vezes.
Com tal sinal a badalar-me na cabeça, no dia seguinte comecei a comprar cautelas vigécimas terminadas em 35, para a loteria do Natal, uma taluda de 8.000 contos. Naquela época eu ganhavva um ordenado mensal muito razoável, conto e meio, 1.500 escudos. Ao todo, até ao dia de andar à roda, eu comprara 16 cautelas, todas elas obedecendo ao meu centésimal palpite.
No dia aprazado, por volta das 19 horas, eu estava defronte ao velho rádio Gründig para ouvir a transmissão da loteria através da Rádio Renascença. Tinha disposto as cautelas por ordem numérica crescente sobre a mesa da sala de jantar.
Minha mãe, com o seu característico feitio, interplou: andas doido com o jogo, menino. Ainda queres ter mais sorte do que a que já tens? Não te iludas, infelizmente nunca sai nada a quem tanto espera.
Começou a transmissão e também meu coração começou a bater mais intensamente. Os pergoeiros iam dizendo os números e logo a seguir os respectivos prémios. Nenhum dos três grandes tinha ainda saído. A dado passo, uma voz masculina e outra feminina, alternadamente, anunciaram: 1... 6... 6... 3... 5...
Decorreram uns segundos de sustentação e eu já tinha à frente dos olhos a cautela com o número todo certinho: ó santinho, santinho... Cogitei.
Em voz mais alta e prolongada, a pregoeira proclamou: primeiro prémio... Oito mil contos!
Bem, não me vi ao espelho, mas de certeza, eu que sou moreno, devo ter ficado lívido. A tremer, para confirmar o que já sabia, voltei a cautela ao contrário e li: 8.000 contos = 400 contos. Ó céus, estou rico... Mas de facto, o que era excepcionalmente muito bom, não era afinal uma grande fortuna.
Aos meus velhotes, dei 150 contos. Logo que recebi o dinheiro, no outro dia às 5 horas da manhã, entrei sorrateiro no quarto de meus pais, que estavam em sono profundo, e cobri-lhes a cama com notas de mil escudos, como se fosse uma colcha. Depois, voltei para o meu quarto e aguardei o despoletar da cena.
Minha mãe levantava-se sempre primeiro. De repente, ouvi a sua surpreendida voz:
- Ah... Ó Alberto, o que é isto?
- O que é isto... O quê, Maria?
- Oh... Isto é dinheiro... Tanto dinheiro... Mas... Pois, o rapaz está maluco...
- Ó mulher, vai ver se ele já saiu... Ainda é muito cedo, está cheio de dinheiro e se calhar já foi pró laréu. Nem dorme...
Saí de facto, mas só por volta das 9 horas. Dirigi-me a um stand na avenida dos Aliados e comprei um Carocha-1200, por 63.800 escudos, de cor azulada muito clarinha, exactamente igual ao Herbie. Eu bem queria que o carro tivesse uma matrícula terminada em 35 ou 53, mas não havia. Fiquei-me obrigatoriamento pelo FF - 83 - 12, irmão gémeo do providencial carrinho que se falasse... Mas... Mas falou!...
António Torre da Guia
O Lusineiro
Link para ver partes do último filme sobre o fantástico Herbie:
Trailer do Herbie
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