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Contos-->NAUFRÁGIO -- 28/07/2005 - 17:49 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A pescaria tinha sido boa. O mestre, com ar sorridente, anunciou o regresso. Custódio sentiu-se orgulhoso. Era o pescador mais novo, mas sabia que continuava a honrar o nome da família. Os «Silvas» eram conhecidos desde há várias gerações pela sua valentia nas fainas do mar.

O dia ia nascer e o céu clareava, enquanto as estrelas se iam sumindo.
Tinham-se afastado bastante da costa. Inesperadamente, sem se perceber de onde vinham, muitas nuvens de configuração vertical começaram a perfilar-se ao longe. O vento começou a soprar com violência.
O cheiro a mar e a peixe transformou-se numa sensação de ar húmido e quase irrespirável. Mestre Olegário perscrutava o horizonte com ar preocupado. Em breve tudo escureceu e começou a chover copiosamente. Uma chuva estranha. As nuvens negras, agora já cobrindo o céu, despejavam bátegas de água que varriam o barco duma ponta à outra.
O mar, até então calmo, começou a ondular fazendo do pesqueiro uma frágil casca de noz. Em breve as ondas se transformavam em vagas alterosas, que quase faziam adornar o barco.
O pânico começou a ler-se nalguns rostos que, pesassem embora outras experiências vividas, nunca tinham visto nada assim. Os pescadores sentiam-se impotentes perante a violência dos elementos da natureza. Chuva cada vez mais impiedosa, agora acompanhada de trovões. As vagas cada vez mais altas e violentas. Alguns dos homens benziam-se.
Os pescadores agarravam-se desesperadamente a qualquer coisa que estivesse por perto, não compreendendo ainda muito bem o que lhes estava a suceder. O barco inclinava-se em todas as direcções, como se tivesse sido apanhado no centro dum tornado. Tão depressa se inclinava de lado como, logo a seguir, parecia um cavalo empinado enfrentando o mar, para logo de seguida mergulhar em sentido contrário. A madeira e as cordas do barco rangiam, queixando-se também daquela violência inaudita.
Uma onde mais alta e violenta, uma outra e outra... O pesqueiro virou-se e as vozes dos pescadores transformaram-se em gritos de pânico e horror. Alguns ainda tiveram tempo de agarrar bóias de salvação e, com os corpos batendo aqui e ali, tentaram afastar-se do barco para evitar alguma pancada que seria fatal naquelas circunstâncias.
Custódio conseguiu afastar-se, apesar das vagas o quererem empurrar na direcção do «Nossa Senhora da Agonia» que se afundava. Já não se ouviam nem vozes nem gritos. Apenas o ruído do choque da água que o céu despejava contra a água que se levantava do mar. Tudo escuro. Apenas alguns raios iluminavam aquela paisagem dantesca.

Custódio deixou-se ir ao sabor da violência das vagas sucessivas. Passado algum tempo, que lhe pareceram horas, o mar acalmou, a chuva transformou-se em cacimba e o céu começou a clarear. Olhou em todas as direcções e nada viu. Nem companheiros, nem o barco nem quaisquer destroços. Só se via mar até perder de vista. Ele e a sua bóia eram uma ilha no meio do oceano. Nadou em círculo, apenas para fazer movimentos e assim evitar que o corpo enregelasse ainda mais. As nuvens cavalgavam o céu, partindo tão depressa como haviam chegado. Conseguiu finalmente ver de que lado se ia pôr o sol. Havia que nadar portanto em sentido contrário para reencontrar terra. Os olhos ardiam-lhe e a pele dos lábios rebentava.
Não tinham tido tempo sequer para lançar um alerta e também não havia hora fixada para o regresso... Ninguém os procuraria nas horas mais próximas.
O céu agora estava limpo, embora escurecendo com o final do dia. Mesmo que algum avião passasse de nada se aperceberia. Não havia outra solução: nadar, nadar... na direcção que lhe pareceu ser a certa. De quando em vez, descansava e pensava na mulher e no filhinho que o esperavam. Para inventar forças!

De repente, ouviu um som que lhe pareceu ser o duma campainha ou da sirene de um barco. Sobressaltado, olhou em todas as direcções.
- Estavas com um pesadelo, homem! Até gritaste. O despertador tocou até ao fim.
- Foi o pior sonho da minha vida, Lurdes. Depois conto-te. Posso ficar mais um pouco na cama. Hoje não trabalho. Esqueci-me de te dizer que hoje é feriado em Espanha.

Custódio, agora já bem desperto, pôde assim recordar o que tinha sido a sua vida até então.
Seguindo a tradição familiar, também ele fora pescador. Gostava do que fazia, embora cedo constatasse que o trabalho dos homens do mar não era compensado como devia. Bastava comparar o preço pelo qual vendiam o pescado com aquele porque o peixe era vendido nos mercados e mais tarde nos restaurantes. Quantos intermediários deviam enriquecer à custa de quem arriscava a vida todos os dias!
Ocasiões houve em que tentaram organizar-se para evitar tanto intermediário, mas em breve outras dificuldades surgiram. Já não podiam pescar o que queriam, nem as quantidades que queriam nem onde queriam. Com a entrada na Comunidade Europeia a vida ainda se complicou mais. Os patrões passaram a receber subsídios para não pescar ou para abaterem barcos à frota pesqueira. A crise aumentou e Custódio, que entretanto casara, teve de fazer pela vida. Procurou emprego e conseguiu-o numa fábrica de conservas.
Com espanto, verificou que muito do peixe fornecido para conserva tinha origem em barcos espanhóis, marroquinos, russos e até japoneses. Onde estava a justiça de Deus, já que da dos homens pouco havia a esperar?
A lógica empresarial faria com que em breve as grandes superfícies fossem inundadas por conservas estrangeiras e os patrões da fábrica começaram a pensar seriamente em fechá-la, o que aconteceria meses mais tarde. Mais uns tantos que foram para o desemprego.
Custódio desanimou. Agora já eram três bocas. Lurdes dera-lhe um filho. Como louco procurou emprego. Aceitaria tudo, qualquer trabalho, pois não queria nem pedir esmola nem morrer de fome.
Trabalhou como jardineiro – um trabalho temporário por conta da Câmara; no Verão foi empregado de mesa num café e mais tarde num restaurante. Com a chegada do Inverno, de novo o desânimo... Um dia, meteu pés ao caminho e procurou emprego em Espanha. A raia estava a dois passos. Bastava atravessar o rio.
Falou com muita gente mas sem resultado. Ao fim do dia, desanimado, entrou numa tasquinha pois já não aguentava a fome. Numa mesa ao fundo ouviu falar português.
Trouxeram-lhe umas tapas e pediu um copo de vinho. Sorriu para os outros portugueses, dando-lhes a entender que era seu conterrâneo. Em breve o convidaram para se sentar mais perto. Contou o que o trouxera por aquelas paragens e logo um dos homens lhe disse que, na fábrica onde trabalhava, andavam à procura de pessoal. Havia até uma certa dificuldade em arranjar alguém, porque naquela região não havia praticamente desemprego. Toda a gente tinha a sua ocupação. No comércio ou na restauração, muitos na construção civil. Tratava-se duma empresa da área alimentar, os patrões eram bons e compreensivos, estimavam muito os portugueses e o salário era praticamente o triplo do que era pago em Portugal.
António deu-lhe o endereço e sugeriu que voltasse um pouco antes das 9 da manhã. Custódio regressou a casa mais animado, mas nada disse à mulher pois queria fazer-lhe uma surpresa no caso de tudo correr bem.
Como combinado, encontrou-se com António, no dia seguinte, à entrada do grande portão que dava acesso à fábrica. Ele levou-o à presença de um dos sócios, que se ocupava sobretudo de questões relativas aos recursos humanos. Apresentou-o como sendo seu amigo e deixou-os a sós.
O Eng.º Alonso Padilla fez-lhe uma curta entrevista e logo a simpatia mútua se evidenciou. Deu-lhe uns formulários para assinar e perguntou-lhe se estaria de acordo em começar no dia 1 do mês seguinte. Faltavam dois dias. Despediram-se com um vigoroso aperto de mão e regressou a casa.
Lurdes estava à porta com o Pedro Manuel pela mão. Custódio abraçou-a longamente e baixou-se para agarrar e beijar o filho, enquanto lhe dava a boa nova. Depois da tempestade a bonança!
A vida modificou-se totalmente para a família Silva. Agora já havia dinheiro para o essencial. Custódio comprou mesmo um carro em segunda-mão, o que lhe facilitava imenso o acesso ao emprego. Finalmente deixara de ser um náufrago no mar negro da vida.

Levantou-se da cama com ar bem-humorado. Era dia de folga. Dirigiu-se à cozinha, onde Lurdes cantarolava, ao mesmo tempo que fazia as lides domésticas.
- Hoje vamos ver os golfinhos. Nunca passeamos! Acorda o Pedro Manuel. Ele vai gostar.

Um sorriso bailava-lhe nos lábios. Pedro ia, pela primeira vez, ver os golfinhos, mas ele ia reencontrar a sensação de estar no mar. O destino levara-o para outras áreas, mas o mar continuava a ser a sua grande paixão.




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