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Contos-->A Tecelagem -- 25/08/2005 - 08:46 (Alexandre Modos Neto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Algumas encomendas de linho foram suspensas por causa do frio que havia antecipado o inverno, e o clima na tecelagem piorava, na medida em que o ar glacial ia congelando os dias abundantes na fábrica que sustentou o ócio de Feliciano por mais de trinta anos. Dias áureos, de pequeno glamour e orgias para o velhote solteirão, herdeiro único da fábrica do pai que o havia sustentado até a morte.

Foram ao todo, sessenta anos de intensa atividade desde a fundação da tecelagem, com faturamento abundante, mesmo nas estações mais frias. Contudo, modernas fazendas de tecido conquistavam, ano após outro, o vasto império ocupado pela “realeza”, tornando a velha fábrica cada vez mais vulnerável às adversidades do tempo. Embora Maurílio estivesse atento às novas tendências do mercado, resistia à necessidade de ampliação das espécies têxteis que produziam, sustentando, assim, seu conservadorismo há trinta e dois anos no comando.

A tecelagem parecia uma concubina: alimentava seus filhotes e desobrigava seus machos. Assim era solteirão, o Feliciano, como foi seu pai e, também, Maurílio o era. Nessa condição Giuseppe, pai do Feliciano, comandou a fábrica por vinte e oito anos, passando a administração para o Maurílio dois anos antes de ser consumido pelo câncer. Este perdeu sua juventude tecendo linho, comprometido com a jura do comando, até que Feliciano criasse juízo suficiente para presidir a empresa. No entanto, como isso nunca aconteceu, o administrador reuniu-se com o Angelim, o mais antigo da fábrica, e participaram a iminente ruína dos negócios ao patrão ocioso.

O corte nas encomendas exigiu um planejamento nas despesas e seu Feliciano passou a freqüentar a fábrica e o controle de produção uma vez por semana, na esperança de tropeçar em alguma solução milagrosa que salvasse o único patrimônio que possuía. Maurílio o acompanhava feito um servo, puxando cadeira e abrindo gavetas com seu jeito patético de bicho assustado. Estava nervoso e falava bastante asneiras, pouco se parecia com o hábil administrador de quase três décadas e meia no comando; até que lá pela segunda semana de auditoria, o velho Feliciano disse: “cale-se, Maurílio! Tenho perfeito domínio sobre o que estou fazendo”. Passaram-se assim aqueles dias na tecelagem e cessaram as recomendações pedantes em favor do patrão para que ficasse sossegado na frescura do alpendre, enquanto ele, Maurílio, varreria as sombras opressoras que rondavam a fábrica.

Seu Feliciano nunca foi dado ao trabalho, já sentia uma canseira nauseabunda daquela peleja, mas também não era bobo nem nada parecido com isso, sentiu que a água lhe esfriaria o traseiro, se continuasse sua vida de playboy ¾ se me permitisse a gramática inglesa, eu diria “playold” ¾ e a seu modo, arregaçou as mangas, meteu as mãos no trabalho e achou algumas irregularidades na empresa. Sua perícia de amador constatou que compravam canetas de marcas diferentes, sendo em maior número as que custavam mais, e que as mulheres, quando iam ao banheiro, gastavam mais energia elétrica do que os homens, porque ficavam mais tempo com as luzes acesas, retocando a maquiagem. Por fim, e maior desgosto para a administração de Maurílio, o velho encontrou um intrigante furo de estoque.

¾ Ora, ora, veja só...! Nem me venha dizer que este Deus-nos-acuda seja uma forma contábil, porque não vou aceitar. Produção e estoque são equivalentes. E-qui-va-len-tes, entendeu?

¾ Equivalentes... Claro... Claro, seu Feliciano. Mas... é uma forma contábil! A empresa é antiga e tem algumas tradições da época do senhor seu pai e não achamos justo bani-las em favor da modernidade. Temos grande respeito por sua memória. Entende?

Alguns meses se passaram e Feliciano já tinha se apoderado da escrivaninha do administrador, até compras para o almoxarifado já havia feito, e todos os dias, às oito em ponto, no pátio da fábrica, ele falava bonito, macio, macio, como só ele sabia naquele lugar. Usava todo seu charme de príncipe herdeiro para encantar aos súditos e ganhar sua simpatia, para que produzissem o nobre linho, felizes como ovelhas.

Mas o Maurílio não estava contente como os operários. Sentia que Feliciano lhe estava dificultando o trabalho, bloqueando seu desempenho de administrador. Passou várias noites em claro, arquitetando um meio seguro e cavalheiresco para dizer em voz alta, na presença do velho e de todos que mereciam ouvir, que novas encomendas e o resgate de antigos clientes deviam-se ao fato de que certos tipos de comerciantes são volúveis e levianos, gostam de fazer média, quando falam com o dono da empresa, por isso, num desvão fortuito, compram regalias de ocasião, e que não é desses tipos de parceiros mesquinhos e oportunistas que a Tecelagem Ovelinha necessita.

Naqueles dias, o inverno já estava em seu entardecer. Feliciano só não dormia na fábrica porque ali não havia uma boa cama e também porque gostava de bebericar à noite no quiosque da Joaninha, desde os tempos de seu maior fulgor. Às vezes, ficava bêbado e molestava os clientes da casa, com gracejos inconvenientes, sem jamais se preocupar com a sandice; várias vezes se meteu em encrenca por conta desse excesso, por isso a boa amiga, quando achava prudente, enfiava-o em um táxi que o deixava em casa.

Fora este particular passava todo expediente na fábrica. Às vezes, gritava com o Maurílio, porque queria saber como se dava o misterioso desaparecimento de uma peça, inteira, de linho, todo mês, há trinta e dois anos: isso é uma barbaridade! Barbaridade, ouviu!? E lá pegaram novamente no assunto do furo de estoque e o Maurílio se espremeu, esganiçou e sentiu que a aquele grão de areia não lhe sairia facilmente da unha. Então, como muito pouco a situação o favorecia, o administrador buscou lá no fundinho, bem no escuro, uma explicação que satisfizesse a incógnita, e lhe retirasse o velho de seu encalço.

Feliciano não o ouviu bem, porque ele falou muito baixinho ao seu ouvido: “como é?” E o Maurílio parecia uma velha raposa, com a mão direita sobre o ombro do patrão, falando baixinho, derramando suave a voz ao seu ouvido, enquanto seus olhos astutos e bem vivos passeavam de um lado a outro como uma sentinela. ¾ É isso seu Feliciano. Minhas suspeitas são bem fundadas, já não lhe disse antes, porque esperava o momento certo, mas, o Amaral, o José Güerino, o Santana... Acho até que grande parte da fábrica está de complô, até o Angelim, este nunca me enganou, sempre suspeitei que pudesse ser ele o gatuno.

¾ Bobagem. Como pôde meu pai entregar-lhe tão valoroso cargo. E eu... Idiota, permiti que este erro grosseiro se perpetuasse. Besteira...! A voz do Feliciano era fraca e irônica que ao homem chegou apenas um sibilo.

¾ Perdoe-me. Não ouvi o que disse, seu Feliciano.
¾ Disse apenas que somente você não me traíra.

Passaram-se mais algumas semanas, o mês findou-se novamente, e como sempre mais uma peça de linho comportara-se como um beneficiário fantasma do INSS. Nessas alturas, Feliciano vivia atormentado com a confusão que o administrador lhe havia aprontado. Não gritava mais com ele, porque estava metido até o pensamento no caso do misterioso sumiço no almoxarifado. Acompanhou dia a dia a produção, verificou com os próprios olhos os lançamentos nas fichas de estoque, que o próprio Angelim fazia, e tudo parecia perfeito. Não havia como a peça fugir, mas fugiu com a mesma simplicidade de antes.

À noite o quiosque da Joaninha não estava agradando ao Feliciano, nem as meretrizes mais refinadas de maquiagem leve conseguiam dar-lhe mais prazer do que a velha tecelagem. E o mistério da peça de linho era o êxtase do momento. Feliciano boiava na excitação pela nova idéia que teve, enquanto bebericava com a Joaninha. Idéia!? Que idéia? Claro, claro, claro. E dali mesmo foi dormir na fábrica de uma vez por todas.

Era umas dez e meia da noite quando o velho parou a Mercedes velha e lustrosa no estacionamento da tecelagem. E a Lua estava redonda como uma moeda de cinqüenta centavos. Só não luzia mais, porque as luzes amareladas do estacionamento a ofuscavam. Feliciano nem notou nada disso, estava meio confuso, porque a fábrica funcionava a todo vapor e havia luzes acesas em vários departamentos. Sentiu-se melancólico, um pouco diminuído, pois não sabia de muitas coisas que aconteciam em sua fábrica. Pensou em como poderia meter respeito nos funcionários, se nem mesmo sabia como funcionava uma fábrica. Jamais havia imaginado que a tecelagem trabalha até altas horas, noite adentro.

Ficou um bom tempo sentado na guia, olhando para aquela ostra, de aparência mórbida, mas que gerava, em seu interior, a pérola que a tantos ali sustentava. Rabiscou algumas coisas no chão, com os olhos perdidos entre os rabiscos e a movimentação de vultos que davam vida àquela maquinaria barulhenta: tão sua. Tão misteriosa como a raça humana. Veio-lhe, repentina, uma vontade de gritar novamente com o Maurílio, intimidá-lo. Depois pegar o Angelim pelo pescoço e estrangulá-lo, até que vomitasse todo aquele embuste contábil. Fazê-los ver que não era idiota, era empresário, um industrial.

Feliciano amargou, amargou, esbravejou e viu que a Lua estava andando e as máquinas da fábrica tilintando a todo curso. Suas reflexões não atingiam a Deus, e nada mudara os acontecimentos, e assim continuaria sendo até que ele tornasse em ações seus pensamentos. Pensou em agir: “isso...! Ora, vejam só. Subalternos! Vou mostrar-lhes que estou vivo”. E entrou na fábrica gritando com o Maurílio. Queria que lhe trouxesse o Angelim e as fichas onde ele controla a produção. Foi um corre-corre até que Feliciano se entupiu de papel. Olhava, examinava, achava todas iguais, e acabava pegando em outro documento. Até que experimentou uma ponta de desgosto, quando o Angelim disse que as fichas azuis eram a produção da noite, e as amarelas a do dia.

À meia noite faziam a troca de turno entre os funcionários e o Angelim era um dos que saíam naquela hora. Seu Feliciano já estava com os olhos charcos de canseira e seu único progresso tinha o mérito no funcionário que já ia para casa. Sua grande idéia foi surpreender o ladrão de linho no silêncio da noite, mas ele é quem acabou surpreendido pela labuta na tecelagem e ficou olhando o Angelim saindo com as cores azuis e amarelas nos lábios. Súbito, deixou as fichas de lado, e pensou rápido como um malandro. Seu grito estouvado o deteve ainda no umbral.

No divã da sala da diretoria, o Angelim estava nervoso, disse várias vezes que fazia apenas sua obrigação, mas o velho insistia com o indicador na ponta do seu nariz, rosnando e silabando: ca-dê-o-li-nho? O homem ficou vermelho, perdeu o respeito pelo patrão, e disse para que fosse cuidar de assunto sério, e deixasse de besteira, perturbando gente que tem mais o que fazer. Feliciano ficou descontrolado, e do lado de fora do escritório os operários pararam para ouvir o palavrório, até que o velho gritou: “você está despedido! Ouviu? Des-pe-di-do”.

O zum-zum-zum dos funcionários que discutiam, do lado de fora, inflamados pela severidade do patrão, foi maior do que o zumbido das máquinas, e o Angelim chorava como um desgraçado, enquanto juntava seus cacarecos nas gavetas. O Feliciano resmungava, dizendo que talvez despedisse todo esse bando de cúmplices miseráveis. Antes de sair o Angelim ainda disse que as fichas amarelas e azuis que tivessem uma tarja preta no canto direito eram para os feriados, e o velho gritou: cale-se!

Vários anos se passaram, e o Maurílio morreu. Diziam que era de tanto trabalhar. O velho Feliciano comia e dormia na fábrica. Estava seco. Arqueado e bem seco. Andava com a ajuda de uma enfermeira paciente feito uma santa. E quem administrava a fábrica era um filho do Angelim, que veio pedir emprego, quando ainda era rapazote. Naquela época, o velho lhe concedeu o emprego para reparar a consciência pesada, porque a peça de linho continuou a sumir do almoxarifado, mesmo com o Angelim fora da tecelagem. Parou apenas, quando o Maurílio morreu.

Nessas alturas, Feliciano já havia se esquecido de muitas coisas: a Joaninha de vez em quando lhe passava sorrindo na memória e os anos de ócio parecem nem ter existido. Enamorou-se do trabalho desde aquele inverno terrível, que cortara algumas encomendas de linho. Desde então, gritou com o Maurílio todos os dias até que o pobre morreu, e o filho do Angelim herdou seu cargo e também, os gritos do patrão.

Em uma tarde, após seu Feliciano ter saído gritando da sala do jovem administrador, este se esparramou exausto, após um duro dia, sobre a poltrona. Serviu-se de uma generosa dose de vinho branco e, distraído, abriu um velho livro, que ficava empoeirado sobre um armário, e tranqüilo passou a lê-lo. Na terceira página, encontrou um envelope antigo e lacrado. Interessou-se pela relíquia, correu até à porta e passou-lhe o trinco. Aquele jovem era o único que tinha o poder sobre aquela relíquia, porque era o administrador. Já nem lhe importava a ranzinzice do velho, nem mesmo o desejo de vingança pela miséria que seu pai passou pelo fim da vida. Sabia que o Feliciano estava na hora da morte, logo deixaria tudo aquilo, para quem possuísse a perícia em tornear os fatos em próprio benefício: alguém como ele, que reinaria confortável na tecelagem que sugou a vida de seu pai. Achou que se vingaria melhor no conforto, a ter que saborear a vingança na cadeia.

Pouco depois de o jovem ter encontrado a carta, seu Feliciano já estava aos berros: “abra essa porcaria de porta, seu idiota, bufão!” Mas ele não abriu. Estava inerte, seu coração batia tão rápido que ele arfava feito um cavalo, e seus olhos rasos, cheios de emoção, relia novamente a carta assinada por Maurílio Domingos e Angelim Albertin, onde explicava a falta mensal de uma peça inteira de linho em pagamento da promessa feita há trinta e dois anos, no mais estrito sigilo, a São Sebastião, para que não permitisse a ruína da tecelagem, e que, na falta desses dois guardiões, seria o substituto da guarda, aquele que encontrasse o envelope.

Outros anos se passaram, e seu Feliciano não morria, sua enfermeira havia sido substituída por motivos de insanidade, e toda a noite era aquela peleja com as fixas de produção, ninguém explicava ao velho o motivo de sumirem duas peças de linho todo mês: “isso é uma barbaridade! Uma barbaridade, ouviu? Duas peças, duas... Você é o mais idiota de todos, ouviu?” A gritaria não cessava, e as máquinas produziam o mais puro linho do Estado, atendiam pedidos que cresciam por todo o território, e dizem até que chegou a pular algumas fronteiras, mas as fontes não são bem seguras, não se sabe bem, quando os documentos são confiáveis...
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