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Contos-->A CHARRETE -- 02/09/2005 - 11:44 (Hull de la Fuente) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A CHARRETE


Amanhece na chácara. Da rede Menina escuta o rumor dos pássaros nas árvores lá fora. Fios de sol penetram pelas frestas das telhas e brincam de lanternas nas paredes do quarto. Da cozinha chegam vozes. Siá Doninha e Maria conversavam. O movimento cresce em torno da casa. O galinheiro, como sempre, é o mais barulhento. Mas, do chiqueiro dos porcos, também chegam grunhidos, reclamam por comida. Não foi à toa que o chiqueiro foi construído lá mais pra baixo, na direção do rio. Menina olha pra rede onde o irmão caçula ainda dorme. Levanta e veste-se com uma calça dele. Enquanto mete os braços pelos suspensórios, ela pensa em acordá-lo. Ambos têm muito que fazer. Dirige-se à rede e sacudindo-a, chama o irmão:
_ Zico! Acorda! Tá na hora de começar.
Sonolento e esfregando os olhos, ele indaga:
_ Começar o quê?
_ Começar, ora! Tudo!
Zico é o único menino na casa. É o caçula e tem apenas quatro anos. Ele sente muita admiração e carinho pela irmã, dois anos mais velha do que ele. Menina, por sua vez, exerce forte influência sobre o garoto. Na ausência de outra criança do sexo masculino, ela faz de conta que é menino, só para acompanhá-lo nas brincadeiras.
_ Tá bom! Vou levantar.
_ Vamos lavar o rosto e depois tomar café.
Na cozinha, Maria faz seu trabalho. Ao vê-los entrar, imediatamente começa a servir a primeira refeição a eles. Menina observa a moça colocar, em pratos esmaltados, um pouco de farofa de ovo com torresmos e pão frito. Os pratos são deixados diante deles. A seguir, em canecas também esmaltadas, serve o chá e dá a eles. Menina começa a comer e olha em direção à ponta oposta da mesa. Avista uma bandeja coberta com guardanapo. Curiosa, olha pra Maria e pergunta:
_ O que tem debaixo deste pano, Maria?
Sem desviar a atenção do que estava cozinhando no fogão de lenha, a empregada responde:
_ Aí drento tem só coisa di qui ocê num gosta. Nem o Zico tamem gosta. A vó dóceis feiz pra modi as irmã dóceis levá.
_ Como você sabe que eu não gosto? Eu ainda nem vi o que tem aí... Vai, diz logo o que é!
Maria vai até a ponta da longa mesa de madeira e levanta o guardanapo. Menina viu alguns beijus amanteigados. Para não fugir à regra, falou:
_ Eu não gosto disto, mas hoje eu vou gostar. Pode por no meu prato.
Maria tenta convencê-la do contrário.
_ Ocê ta só cum moda! Ocê vai dexá tudin no prato...
_ Eu não vou deixar nada! E pode dar beiju para o Zico também.
Ao ouvi-la Zico protesta:
_ Eu não quero isto não! Eu não como este negócio que parece orelha de vaca! Você vai comer sozinho, moço!
Maria partiu um beiju ao meio e deixou no prato da garota, voltando, em seguida, para o que estava fazendo junto ao fogão. Ela sabia que quando os irmãos começavam uma discussão, o assunto rendia. Mas, estranhamente, Menina não insistiu com ele para aceitar o beiju. A atenção dela já estava desviada para outra coisa. Metendo a cabeça por baixo da mesa, viu que o gato não estava. Onde ele fora? O gato estava habituado a esperar, todas as manhãs, ali, na forquilha das pernas em xis, da mesa de jantar. Pra onde ele fora? Então, com o sentimento de urgência que a caracterizava, chamou de novo a paciente empregada:
_ Maria, você não está vendo que nós estamos aqui?
_ Vi sim Menina! Eu até já botei cumida proceis dois.
_ Não é disso que estou falando. Cadê a mamãe e o papai? Cadê a vovó? E o tio Antônio? Cadê o meu gato?
_ O pai doceis foi trabaiá. A mãe doceis saiu cum ele pru modi que vai no dotô. A vó doceis tá lá na horta, na beira do rio e siô Antônio tá lá na cancela grande, pra modi isperá umas visita. E o gato eu nun sei pra dondi ele foi.
Menina ouviu em silêncio enquanto olhava o irmão que brincava de molhar no chá o pedaço de beiju, que ela nem tocara e deixara no prato. Zico agitava o beiju molhado no ar e dizia:
_ Moço! Parece orelha de vaca balançando, não é?
Menina apenas fez que sim com a cabeça. Estava remoendo as palavras da empregada. Ela dissera que o tio esperava visitas. Aquele seria um dia diferente. Visitas sempre traziam novidades. Com certeza, alguma coisa deveria acontecer. Ainda mais se tratando de pessoas ligadas ao tio Antônio, a quem ela amava. Menina olhou pra caneca de chá de capim santo, à sua frente. O chá ainda fumegava, não esfriava nunca e ela reclamou com Maria:
_Por que você serve o meu chá nessa porcaria de caneca? Porque não usa as xícaras grandes da vovó? Quando este chá esfriar, as coisas lá fora já acabaram e eu não vou ver. Traz uma xícara da vovó pra mim...
_ Num possu!
_ Não pode por quê?
_ Pru modi que ocê quebra tudo e dispois a vó doceis briga cumigo. Ela bate ni ocê e eu num gostu de vê ocê apanhá. Toma logo o café e larga mão de calundú.
_ Isto não é café, isto é chá de capim-santo. Eu já pedi pra você não deixar o meu chá nesse bule em cima da chapa do fogão. Por que você não faz?
_ Pru modi que as irmã doceis gosta é quente.
_ Mas elas já foram pra escola faz tempo. É você que esquece de tirar o bule da chapa.
_Tá bom, Menina, amenhã eu si alembro.
Menina e o irmão comeram em silêncio o resto do tempo, agora perturbados apenas pelos dois gatos, que reapareceram, e se roçavam em suas pernas. Por baixo da mesa ela passava os torresmos aos bichanos. Os gatos eram quase como cães para as duas crianças. Onde elas estivessem, podia ter como certo que eles estariam.
Puxando o irmão pela mão, Menina saiu em direção ao pátio da frente da casa. Era na varanda que ela programava o dia.
_ Zico! O que você acha da gente ir procurar o tio Antônio lá na porteira de entrada, hein?
_ A gente vai lá. Mas e se ele brigar?
_ A gente corre, ora! Também ele só briga quando está esperando as namoradas - e pensativa acrescentou - agora não é hora de namorada, é ainda de manhã...
_Moço! Quando é que é hora de namorada?
_ Eu acho que é quando tem lua. Também no dia que é feriado. No dia de domingo! Aí não precisa ter lua, basta a vovó matar galinhas para o almoço. As namoradas do tio gostam de comer a galinhada que a vovó faz.
_ Eu também gosto - disse o menino. E conversando, os dois pequenos começaram a caminhar na direção da porteira.
Não fossem os cabelos cacheados de Menina, qualquer um diria que eram dois moleques que caminhavam pela estrada. Dois moleques, de pele dourada, cabelos castanhos, rostos ovais, onde espertos e indagadores olhos escuros brilhavam. Eram crianças saudáveis. Mas agora só estavam interessados nas visitas que o tio receberia. Eles não sabiam qual a ocupação do tio, pois, na maior parte do dia, Antonio permanecia na chácara. Agora essas visitas inesperadas. Seriam pessoas que gostavam de brincar? Menina estava curiosa, quase aflita. Era melhor se ocupar com outra coisa. Do bolso traseiro da calça, tirou o inseparável estilingue. Parou em frente a um jenipapeiro e fez pontaria em direção aos frutos que pendiam da árvore. Os jenipapos caíram na beira da estrada. Ao apanhá-los, ela perguntou ao irmão:
_ Zico, será que essas pessoas que vão chegar gostam de jenipapos?
_ Ah! Não sei moço. Jenipapo é um negócio ruim, a vovó só pega pra fazer bebida de gente grande...
_ O nome é licor, é gostoso. - Adiantou Menina.
_ Como é que você sabe?
_ O papai deixou um pouco no copinho e eu tomei escondido. É bem docinho...
_ Ah! - fez Zico.
_ Olha, não conta pra ninguém, hein?
_ Não vou contar nunca! Nadinha...
_ Então ta. Você leva os jenipapos. Vamos encontrar o tio Antônio.
Ela dava ordens e ele obedecia. Não andaram mais que trinta metros quando lá adiante, na curva dos buritis, Menina gritou de alegria:
_ Olha! Que coisa mais bonita do mundo!
_ Uma carruagem! - exclamou o pequeno Zico.
_ Não Zico. É uma charrete, não tá vendo?
_ E o nosso tio Antônio vem dentro dela! Olha, tem outro homem, também. Mas cadê as outras visitas?
_ É sim! Cadê? Só tem aquele homem. Que bonita! Parece uma festa. – Menina estava deslumbrada, não cabia em si de contente.
_ Festa é assim? Parece charrete? - quis saber o menino.
_ Claro! Em dia de festa todo mundo fica alegre. Todo mundo veste branco, azul-claro, amarelo... Igualzinho àquela charrete.
_ Vamos gritar pra que eles vejam a gente. Sugeriu Zico.
_ Não precisa! O tio já viu a gente. Tomara que ele leve nós dois.
Numa manobra fantástica, segundo a opinião dos pequenos, o tio puxou as rédeas e a parelha de cavalos cinza-claros, se deteve ao lado deles. Quando sorria, Antonio arqueava a sobrancelha direita. Menina achava lindo. Foi com esse sorriso que ele falou com a sobrinha.
_ O que você está aprontando a essa hora da manhã? Sua danadinha?
Ignorando a pergunta, ela falou:
_ O senhor leva a gente? Olha! O Zico está carregando esses jenipapos que são muito pesados.
Na verdade eram apenas três jenipapos. Pareciam bolas murchas e enrugadas. Zico, desajeitado, levava-os na fralda da camisa, como se fosse uma sacola. Os dois riram de alegria quando Antônio os ajudou a subir na charrete. Em seguida, o rapaz voltou a conversar com o estranho:
_ Estes dois pestinhas são os filhos mais novos de minha irmã. O marido dela é o dono desta chácara. Você vai gostar das terras, são muito boas e produtivas. Nós temos trabalhado muito aqui. Ao ouvir isso, Menina riu e retrucou:
_ Uê tio! O senhor trabalha? - não satisfeita acrescentou - A vovó trabalha. A Maria também. O meu pai trabalha lá no escritório da Fundação.
O rapaz ignorou-a e prosseguiu:
_Sabe, Joel? Neste mandiocal, à direita, temos alguns alqueires plantados, é grande pra uma chácara. Do lado esquerdo, até às margens do rio Araguaia, é outro tipo de plantação. É um bom pedaço de terra. Minha mãe planta muita coisa. Temos uma horta muito boa. Plantação de milho, cana, melancia, abóbora. Temos criação de porcos, para o consumo da casa. Criação de cabritos, galinhas, cocás, patos. Depois eu lhe mostro tudo que temos por aqui.
O rapaz interrompeu a conversa ao chegar diante da casa. Os dois saltaram e estenderam as mãos para os garotos pra que eles descessem. Menina protestou e seu irmão imitou-a.
_ Ah! Tio! Deixa a gente ficar aqui, nós não vamos fazer nada. Deixa!
_ Absolutamente, não! Vocês vão descer! Olha ali os gatos. Por que não vão brincar com eles? Vou levar o Joel pra cozinha. Vamos tomar café. Quero vocês longe desta charrete, hein?
Conformado, Zico foi o primeiro a estender os braços para o tio. Menina fez cara de amuo, mas não teve alternativa. Saltou da charrete, chamou o irmão e foram sentar-se ao lado dos gatos que dormiam no batente da porta da sala. Cada um pegou o seu gato. Dessa vez foi Zico que reclamou:
_ Que enjoado, o tio. Bem que ele podia ensinar a gente guiar essa charrete.
_ É sim - concordou Menina - Mas a charrete é do “seu” Joel. Sabe o que você faz? É só não dar os jenipapos pra ele. Mas vai ver, o “seu” Joel nem sabe o que é jenipapo. Eu acho que ele nem sabe que é pra fazer o licor da vovó.
_ Ih! Eu deixei os jenipapos no canto da charrete. - lembrou-se Zico - E agora? O que a gente faz?
Menina olhou na direção da charrete e pensou por alguns segundos... Aquele esquecimento era a providência divina. Sem pensar mais declarou:
_ Já sei! Vou pedir para o meu gato pegar os jenipapos. A sua gata também deve ir, pra ajudar o Paizinho.
O gato não tinha propriamente um nome, mas até os adultos da casa, o chamavam de “Paizinho”. Por que, segundo a imaginação de Menina, o gato a chamava assim. Passando da palavra à ação, a garota falou bem próxima à orelha do bichano, num sussurro:
_ Está escutando Paizinho? Você e a gata vão ter de fazer uma coisa pra gente. Tá vendo aquela charrete branca?
Segurou a cabeça do gato e apontou-a na direção da charrete, acrescentando:
_ charrete é aquela coisa bonita que está atrás dos cavalos...
Nesse ponto o caçula a interrompeu.
_ Explica pra ele o que é cavalo!
A garota riu. A ingenuidade dele a encantava e fazia com que ela gostasse mais do irmão. Ele acreditava que ela podia falar com os gatos e que eles a entendiam.
_ Não precisa. Esses gatos são caipiras. Eles conhecem cavalos e todos os bichos do mato. Conhecem até a bicharada da chácara também.
Voltando a atenção de novo para o gato, perguntou:
_ Você entendeu gato? Lá dentro da charrete tem três jenipapos da gente. Você e a gata do Zico vão subir lá e pegar os três. Você compreendeu?
Sem que o irmão notasse, beliscou o pescoço do gato que soltou um miado e fez menção de levantar-se. Ela aproveitou a deixa e falou:
_ Tá vendo? Ele entendeu e já está querendo ir. Pergunta pra sua gata se ela entendeu.
Zico olhou pra gatinha e repetiu a pergunta da irmã:
_ Você entendeu gata? Você entendeu?
A gata continuou apática como era seu jeito de ser. Menina consolou o irmão.
_ Ah! Deixa pra lá Zico, ela não gosta de responder. O Paizinho explica pra ela. Agora vamos lá pegar os jenipapos. Primeiro você vai até à porta da cozinha e olha. Vê se o tio Antônio e o dono da charrete ainda estão tomando café. Não deixa o tio ver você, hein?
Rápido, o menino foi até à porta da cozinha, olhou pra dentro e voltou pra junto da irmã.
_ Vamos moço! Eles estão muito ocupados, comendo.
_ Tomara que a Maria tenha dado pra eles, daquele chá que não esfria nunca. – lembrou, Menina.
Aproximando-se da charrete, ela ficou na ponta dos pés e olhou procurando os jenipapos. Em seguida levantou o gato até a altura do próprio rosto e falou:
_ Eu já vi os jenipapos, eles estão no fundo da charrete. Vou por você aí dentro e você vai pegar. Pega um, depois outro, depois outro. Vai lá e faz o que eu mandei!
Após soltar o gato sob o banco de passageiros, tomou das mãos do irmão, a gatinha sem nome e disse:
_ Gata, você ouviu o que eu disse para o Paizinho. Vai lá! Ajuda ele! Vocês têm que tirar os jenipapos daí.
Depois de soltar a gata na charrete, voltou-se para o irmão:
_ Sabe moço? Esta sua gata é muito boba. Além de magra e preguiçosa é bem capaz de atrapalhar o Paizinho.
_ Ela não vai atrapalhar, moço! – e curioso pediu à irmã - Deixa-me ver o que eles estão fazendo, deixa?
_ Tá bom! Eu ajudo você subir. Mas você não pode ajudar os gatos. São eles que devem pegar os jenipapos.
Menina ajudou o irmão a subir no banco do condutor. Curiosa, também queria saber o que ele estava vendo.
_ O que os gatos estão fazendo? Eles já viram os jenipapos? Mostra pra eles onde estão. Não vale você pegar. Tem que ser eles. Diz logo, Zico! O que eles estão fazendo?
Para a urgência que a afligia, Zico era muito lento. Menina não sabia se ele fazia aquilo de propósito ou não. Finalmente ele falou:
_ Minha gata cheirou os jenipapos e franziu os bigodes. Agora ela está conversando com o Paizinho...
_ Conversando o quê?
_ Coisas deles, ora!
_ Ah! Você não tá vendo nada!
_ Tô vendo sim! Agora o Paizinho lambeu um jenipapo e cuspiu.
_ Você tá inventando! Gato não cospe.
_ Mas este cospe, eu vi!
_ Manda logo esses gatos bobos pegar essas coisas. O tio já deve estar vindo - lembrou Menina.
_ Não estão vindo não. Aquele homem estava com a boca cheia de comida, eu vi!
_ Ele já deve ter engolido, seu bobo! Já deve quase estar chegando aqui. Anda logo, fala pra esses gatos cumprirem a obrigação deles, se não vai ter!
_ Moço, você tá falando igual à vovó - reparou Zico.
_ Não tô nada! E se você não consegue, eu vou ter que subir e falar com esses gatos, já, já.
Tudo o que ela desejava, na realidade, era subir novamente na charrete. Como era bonita! Toda branquinha, as rodas, quando giravam, pareciam duas margaridas gigantes. O raio das rodas era pintado de azul-claro e branco. O eixo, pintado de amarelo. As rodas lembravam à flor. Os bancos eram forrados com tecido azul-claro. Era muito bonita e limpa. Menina estava decidida a subir mais uma vez naquela maravilha. Não querendo perder nem mais um segundo, falou com o irmão:
_ Zico, você e esses gatos não resolvem nada! Chega pra lá um pouquinho porque eu vou subir.
Já na charrete, Menina percebeu que as rédeas dos cavalos, não estavam presas ao portão. Do alto era possível vê-las, estavam apenas apoiadas na cerca de madeira. Sem dizer nada ao garoto, sentou-se ao lado dele. Olhou para os gatos que se moviam de um lado pra outro no fundo da charrete. Estava feliz. Então comentou com Zico.
_ Sabe, moço? Eu não queria nunca ser gato ou cavalo, nunca mesmo...
_ Ora, por quê? Eu gosto de gato, gosto também de cavalos...
_ Eu também gosto. Mas eu não queria ser um deles. Os gatos são muito idiotas e desobedientes. Eles não fazem o que a gente quer. E eles também comem ratos e outras porcarias. Eu não queria ser um!
Zico olhou-a com o canto dos olhos e lembrou:
_ É, mas cavalo não come rato, só capim.
_ Você não tá vendo? Os cavalos são muito burros. Tá vendo estes aqui? Nem estão amarrados na cerca, mas pensam que estão. Depois eles não podem se coçar, porque no lugar de unhas eles têm esses cascos. Olha só! Eles estão comendo o capim seco aqui de perto da cerca. Nem parece que tem um monte de capim verde, do outro lado. Bastava andar um pouquinho e comiam do verde.
Zico ouviu-a pensativo e depois sugeriu:
_ Moço, por que você não fala com eles que o capim ali da frente é verde?
_ Não adianta. Cavalo é muito burro, ele só obedece quando o dono puxa essas cordas que passam por dentro da boca dele. E depois, cavalo não entende nossa fala, só de outros bichos.
O garoto estava impressionado com o conhecimento da irmã, sobre cavalos. E, querendo ajudar os animais a verem as grandes moitas de capim, perguntou:
_ Bicho fala com bicho?
_ Fala sim! Você não ouviu nas estórias que o papai conta pra gente?
_ Ouvi sim! Moço, então pede para o Paizinho falar com os cavalos que o capim dali é verde.
Menina achou a idéia excelente. O irmão a surpreendia também. Os gatos já estavam cochilando no acolchoado sob o banco da charrete. A garota olhou na direção deles e disse:
_ O meu gato não pode! Ele está dormindo. Você está pensando que é fácil tentar pegar esses jenipapos, é? Não senhor. Peça pra sua gata.
_ Tá bom, moço! O que ela deve dizer para o cavalo?
_ Ora! Ela deve dizer pra ele deixar de ser bobo e olhar para os lados. Que aqui deste outro lado tem capim verde.
_ Mas de que lado é? - perguntou Zico enquanto pegava a gata que, como sempre, parecia alheia a tudo a sua volta. Mas quando o garoto a abraçou, os olhinhos amarelo-esverdeados, brilharam num sorriso. Menina sabia quando os gatos sorriam. Zico insistiu na pergunta.
_ Qual o lado que a gata deve mostrar?
_ O lado que eu estou, ora!! Lado direito. Mas não adianta dizer isso para os cavalos. Eles não sabem o que é lado. Aposto que esta gata também não sabe.
Zico não gostou e tomou a defesa da gata.
_ Não é verdade! Minha gata sabe o que é lado sim!
_ Tá bom! Então manda logo essa gata fazer o trabalho dela.
_ Como é que eu faço? Boto a gata no chão?
_ Não, seu bobo! A orelha do cavalo é muito alta, a gata não alcança. Assim o cavalo não escuta nada.
E na bela manhã ensolarada, Menina teve a idéia mais imprópria que poderia ter tido.
_ Põe a gata nas costa do cavalo que está do seu lado, que ela vai andando até a orelha dele.
Sentadinho como estava no banco de passageiros, ao lado da irmã, Zico olhou as costas do animal à sua frente. Depois, alisando o pescoço da gata, recomendou:
_ Gata, diz para o cavalo, que do lado que “o meu irmão está sentado” tem moitas de capim verde. Anda, vai lá e diz.
Em seguida ele ficou de pé e levantou a gata tentando soltá-la sobre as ancas do cavalo. Sua irmã, vendo que ele não conseguiria, aconselhou:
_ Jogue a gata, que ela se segura.
Daí tudo aconteceu muito rapidamente. Ao sentir-se jogada, a gata, cravou as unhas nas costas do cavalo, para não perder o equilíbrio. O cavalo, assustado, empinou-se perigosamente e começou a relinchar. O outro cavalo também se assustou e ambos começaram a correr. Os garotos agarraram-se ao banco da charrete e apavorados puseram-se a gritar, chamando pelo tio. Mesmo tomada de terror, Menina olhou para trás, na direção da casa. Viu que o tio e o proprietário da charrete vinham correndo como loucos tentando alcançá-los. Os cavalos, disparados, corriam na direção do portão de saída. Menina tentou acalmar o irmão que chorava forte e chamava pela mãe. Ela também estava com medo. A charrete balançava para todos os lados, os garotos não tinham a menor idéia do que fazer numa situação daquelas. A gata não conseguiu firmar-se nas costas do animal, para alívio dele. Ao soltar-se ela quase foi atropelada pela roda da charrete. O gato Paizinho, assustado, tinha as unhas presas no forro azul-claro do banco. Seus olhos pareciam saltar da órbita, de tão abertos. Para convencer-se de que escapariam daquela situação, Menina falou com o irmão:
_ Zico! O tio já está vindo salvar a gente, não chore!
Aos gritos o garoto respondeu:
_ A charrete vai cair no abismo. Eu não quero ir pra lá, a vovó disse que o abismo é a casa do capeta...
_ Não, Zico! Aqui não tem abismo, só existe a cerca de arames e a mata. Fica agarrado ao banco! Não solte o banco.
O garoto agarrou-se o mais forte que pôde, ao banco. Mas o pavor continuava.
_ Na mata tem cansanção, tem bichos, tem onças e eles vão pegar a gente.
_ Não vai ter nada disso, olha! O tio tá quase pegando a charrete.
_ Eu quero voltar pra casa, moço. Manda esse cavalo ficar quieto...
_Não adianta, eles não entendem. Veja! O tio já está quase chegando.
Menina não sabia mais o que dizer ou fazer. Por sorte, os dois rapazes estavam alcançando os cavalos e tentavam pegar as rédeas de freio. Joel agarrou-se na charrete e num movimento de acrobacia pulou para o banco do cocheiro e então puxou as rédeas. Os cavalos ainda tentaram prosseguir, mas, aos poucos, o dono os acalmou. Do seu canto Menina observou que o homem tinha a camisa molhada de suor e ofegava. Ela e Zico estavam mudos. As lágrimas corriam silenciosas pelos rostos vermelhos. O tio aproximou-se dos garotos. Ele também estava ofegante e com raiva. Entretanto, subiu na charrete enquanto Joel manobrava para retornarem à casa da chácara. Zico abraçou-se ao tio e comentou:
_ A gente queria que os cavalos vissem o capim verde, mas a gata não deu o recado pra eles.
O rapaz percebeu logo que o sobrinho fora vítima das traquinagens da irmã. Quando chegaram à porta da casa, já estavam ali a empregada e a avó. Antônio pegou o sobrinho por baixo dos braços e o entregou para Sià Doninha. Zico ainda chorava e tremia. A seguir, saltou da charrete e estendeu os braços pra Menina descer. Zico abraçou-se ao pescoço da avó e disse a ela:
_ Eu fiquei com medo de ir pra casa do capeta, lá no abismo...
Menina conhecia o peso das mãos de Siá Doninha. Certamente ela ia apanhar com os ramos de malva, também com as chinelas da avó. Apavorada, abraçou-se ao tio. Antônio emocionou-se ao sentir contra sua perna esquerda, as batidas aceleradas do coração da sobrinha. Para acalmá-la, tentou brincar como sempre fazia, chamando-a de “Lagarta-de-fogo”.
_ E aí, Lagartinha-de-fogo! Parece que tem um passarinho querendo sair do seu peito. Não me diga que você engoliu um quero-quero. Fica calma! Vamos à cozinha tomar água com açúcar, tá bom? Depois a gente conversa. Vamos todos tomar algo na cozinha.
Ao ouvir o tio dos meninos, a boa Maria adiantou-se e foi pra dentro da cozinha preparar um refresco para todos. Siá Doninha, que até então não dissera uma palavra, dirigiu-se ao proprietário da charrete.
_ Desça daí, Joel! Depois desse susto e da correria, você merece mais do que um refresco. Venha tomar um licorzinho de jenipapo.
Jenipapo! Pelo menos por algum tempo, Menina e Zico não queriam saber daquele fruto.
O restante da manhã na chácara, transcorreu sem novos incidentes. Antonio saiu para mostrar a propriedade ao visitante. Na varanda, abraçada ao gato Paizinho, Menina ficou ansiosa pra contar pra Liviva, a irmã do meio, a aventura na bela charrete com rodas de flor. Demoraria ainda pras irmãs voltarem da escola?

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