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Contos-->PRESENTE DE PAPAI -- 10/09/2005 - 18:12 (Benedito Generoso da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
PRESENTE DE PAPAI


Não importa sua crença,
A verdade é uma só;
Desde que eu era criança,
Dizia assim minha vó.


No dia que meu pai foi sepultado, contava eu com trinta e três anos de idade.
- É a idade de Cristo – dizia minha quarta namorada. Isso depois de me haver casado por quase doze anos. Junto de nós dois estava minha primeira e única filha do casamento frustrado, já com dez anos de vida. Vi quando ela desfolhava uma margarida e com as mãozinhas lançava as pétalas em direção àquele buraco profundo e, em meu pensar, no momento, também imundo, pois que em poucas horas ali haveria de estar um cadáver putrefato, exalando um mau cheiro que ninguém suporta. Sem dúvida esta é a razão por que abandonamos nossos queridos mortais bem dentro do coração da terra. Quem pariu Mateus, que o embale! Se viemos do pó da terra, nada mais justo que voltemos a ela. Que a Mãe Terra nos receba de volta e nos dê o destino merecido. Por falar em merecimento, quem é que não se acha merecedor de uma sorte melhor, quem sabe viver uma vida eterna?! - Adeus, pai velho! Nunca vou esquecer nossos passeios e sempre hei de lembrar daquele piquenique, quando você escorregou e caiu num buraco de tatu, de tanto bêbado que estava e minha filha, sua neta, ajudou-o a se levantar. Queira me perdoar por ter rido tanto em minha vida. Acho que foi o maior prazer que senti e agora me culpo por isso. Sem dúvida rir dá prazer. Ou talvez seja o prazer que nos faz rir. O fato é que achei muito engraçado ver meu pai se levantar com a cara suja de terra e perguntar quem foi que o empurrou. Eu não conseguia parar de rir e você fazia cara de sério, mas não agüentou e começou a rir também. Depois levantou os braços e bradou: - Cair e se levantar é sinal que a vida continua. Quando se cai e não mais se levanta, então é porque chegou o fim. Não me deixe morrer, meu filho. Tenho medo de que do outro lado não exista nada e eu acorde procurando por mim, sem me achar. Será que meu pai agora está procurando por ele? Era o que eu me perguntava, enquanto o túmulo ia se fechando e um pouco de mim desaparecia naquela tumba, nossa maior inimiga. Apesar disso, porém, sempre senti a maior paz ao passar próximo a um cemitério. Tenho algum temor diante de hospitais e o maior horror frente a uma penitenciária ou delegacia de polícia. Acho que saúde e liberdade são tudo na vida. Sem essas duas razões de ser, penso que seria melhor mesmo a morte. Para todo ser vivente, chega o momento que o fim é um verdadeiro presente. Então meu pai tinha conquistado o seu. Um túmulo enfeitado de flores. Que mais espera um ser humano, além disso, depois de ter gozado os prazeres da vida? Para meu pai faltava ainda o maior prazer, pelo que pude entender de suas últimas recomendações no leito de morte. Com meus óculos escuros e abraçado à nova namorada, também mamãe e cujo filho de um ano que não era meu jazia num carrinho embalado pela avó, dali um pouco afastada, mas que a tudo assistia com grande interesse, eu não perdia de mira apenas duas pessoas. Em meu bolso trazia com muito cuidado a garrucha de dois canos que meu finado pai me dera no dia de meu aniversário, três meses antes, quanto eu atingira a idade do Filho de Deus. Era o dia do piquenique que mencionei atrás, quando teve aquela queda ao pisar na toca do tatu e se levantou ajudado por sua neta, minha filha primogênita, que nesses instantes finais lhe atirava flores. “Será que aquela arma ainda funcionava?” Por precaução eu trouxera e deixara no carro estacionado próximo ao portão do cemitério meu mauser automático embalado, capaz de disparar uma rajada de tiros em menos de trinta segundos e que não falharia nunca. Só que isso não foi preciso, pois do mesmo jeito que meu pai me instruiu, eu me via manuseando a garrucha, modelo trezentos e vinte, com duas balas engatilhadas e outras duas no bolso, de reserva. Isso tudo é o que estou recordando agora, atrás das grades de uma prisão. Não sei se ela (penso em minha namorada, mãe daquele inocente que vi pela última vez dormindo num carrinho de rodas), renegada pelo canalha que lhe fez falsas juras de amor aprendeu que todo mal feito terá que ser refeito, mais cedo ou mais tarde. O que sei é que ela não é capaz de adivinhar meu novo plano para quando sair daqui, só que isso não tem muita importância para mim, um instrumento da vingança dos céus. Afinal, são quase oito anos passados que me encontro aprisionado na Penitenciária do Estado para cumprir trinta e seis anos de reclusão, talvez trinta, limite fixado na legislação penal. Deram-me a pena máxima, ou quem sabe a mínima que eu merecia. Não me considero preso e sim encarcerado. Assim soa melhor. Aqui eu trabalho, tenho tempo livre e estudo também. Leio a Bíblia toda manhã e me confesso freqüentemente com um frade capuchinho que se tornou meu amigo e me aconselha a esquecer o passado. Só que não esqueço e jamais me perdoarei se não cumprir minha missão até o fim. Veja que capricho do destino! Eu sempre tive horror só de pensar em penitenciária, no entanto eu me encontro aqui, atrás desses muros de pedras, solitário, sem minha mulher amada (hoje odiada e jurada de morte) e sem aquele que foi o maior ídolo de minha vida, meu pai. Sei que me falta dizer alguma coisa para quem ousa perguntar:
- Sobre sua mãe, não diz nada?
Eu respondo que sou como Jesus que embora querendo não podia elogiar sua mãe, pois que, sendo Deus, contradiria a si mesmo. Como pode um Deus ter mãe? Ou é Deus e não a tem, ou tem mãe e é apenas homem. Acho que a humanidade pecadora botou mesmo Cristo numa fria. Primeiro Adão e Eva pecaram e Ele precisou vir a esse mundo cão, entrando numa enrascada só por amor a nós que nada merecemos, tendo de guardar preso na garganta esse nome tão sagrado para um ser humano. Daí nunca ter chamado Maria de mãe. Só que a história não o perdoou, porquanto o maior ramo do cristianismo achou por bem exaltar tanto sua Mãe que esta hoje lhe faz concorrência. De minha parte, só tenho a dizer que também tive mãe. Ela se foi quando eu tinha dez anos, deixando-me a mim e ao meu pai e minhas duas irmãs mais velhas, sem que até hoje eu saiba por que. Minha mãe sumiu de vez. Desconheci seu paradeiro durante mais de uma década. Um dia me telefonou e não reconheci sua voz. - Não sabe quem está falando? – perguntou-me. – Por acaso esqueceu que você ainda tem mãe?
- Que eu saiba, não tenho mãe. - respondi.
Ora, se Moisés, o profeta, teve que abdicar de sua mãezinha para cumprir a grande missão que Deus lhe destinara, libertando todo um povo da opressão, por que eu precisaria de uma mãe àquela altura da vida? Também eu cumpro religiosamente o papel que o destino me reservou e ainda não o concluí, mas o que me resta a fazer é tão simples e não tomará mais que alguns segundos de meu ocioso tempo. Desligou na minha cara e nunca mais eu soube dela e nem quis saber até nos encontrarmos, pela última vez, no cemitério, por ocasião do enterro de meu pai. Minhas irmãs estudaram, profissionalizaram-se, casaram-se e vivem bem. Não sei onde estão e não me preocupo com elas. Só uma coisa não posso esquecer: Comprometi-me com minha última namorada. Foi na verdade um pacto de sangue. Com uma lâmina fizemos um corte em nosso polegar. O meu foi vertical e o dela horizontal. Cruzamos nossos dedos e juramos fidelidade. Quem dos dois traísse deveria ser morto pelo outro. Tramamos isso durante o velório de meu pai porque eu sabia o que devia fazer logo após o sepultamento. E foi o que fiz. Vejam como. Não sei se estão acompanhando meu raciocínio, que aqui atrás das grades consiste em recordar fatos do ritual do sepultamento de meu progenitor, quando surpreendi a todos com um tiro, depois outro, disparado da garrucha de dois canos, o presente de meu pai. Ao estrondo dos tiros, a fumaça encobriu tudo à minha frente, mas ainda pude ver meu padrasto caindo nos braços de minha mãe que também morria fitando-me com seu olhar furioso. Naquele momento eu sabia que estava preso e perderia a guarda de minha filha para o amante da mãe dela, por isso saí do cemitério e só dei mais alguns passos até abrir a porta do carro e tirar do porta-malas o revólver embalado com o qual concluí o resto da cerimônia, desferindo um tiro em minha própria filha. “Se ela não pode ser minha, não será de ninguém mais neste mundo. Eu a devolvo para Deus.” Assim queria meu pai e eu não ousava desobedecer-lho. O ritual tinha que ser cumprido à risca. Saí dali rindo a mais não poder e me entreguei à polícia que chegava e me algemou. Não resisti. Era minha sina. Tudo estava escrito e marcado. Tinha que ser daquele jeito, pois uma ordem provinda do alto eu não podia contrariar. Sentia-me recompensado por ter cumprido o desejo de meu pai. Sabia que minha pena era a máxima, mas não me importei em ser preso. Afinal Cristo também o foi. O que me dói é saber que aquela que esteve ao meu lado até o último instante, e fez um pacto de sangue e morte comigo, traiu-me com o meu melhor amigo. Eu me aborreço com isso certas horas da noite quando acordo e não mais tenho sono. Isso dói, mas não é surpresa já que meu Senhor também foi traído. Eu soube de tudo há pouco tempo, só que jamais esqueço de quem me trai. Não perdoei minha mãe e nunca perdoarei a ninguém. Sei que aquela que ficou comigo na hora da tragédia está nos braços de outro. Esqueceu-se de mim, mas eu não me esqueço dela. Hoje ela dorme feliz com meu rival sem saber que estou prestes a ganhar liberdade condicional e ainda tenho guardado, em lugar secreto, o presente de papai: Uma garrucha de dois canos com quatro balas. Duas já foram disparadas, outras duas ainda restam. Adivinhem para quem?


BENEDITO GENEROSO DA COSTA
benedito.costa@previdencia.gov.br
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