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Contos-->"O ENTERRO DO SAPO" -- 10/09/2005 - 20:14 (Hull de la Fuente) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este conto faz parte da série "A Menina da Chácara", composta por 23 episódios. Neles conto parte da minha infância passada na chácara do meu pai, às margens do Rio Araguaia, em Aragarças, fronteira com Barra do Garças, Mato Grosso. As pessoas citadas nos episódios são todas reais. Evidentemente, alguns nomes foram mudados para preservar a privacidade das mesmas. Chamo a atenção para o modo como meu irmão caçula me tratava: "moço". A razão é explicada no primeiro episódio, "A Charrete". No início, escrevi para meu filho e meus sobrinhos, que gostavam de ouvir o relato das minhas aventuras com o gato "Paizinho". Mais tarde, algumas´pessoas leram e me incentivaram a publicá-los.





O ENTERRO DO SAPO





A chuva chegou violenta e a proximidade das serras de Barra do Garças piorava a situação, pois fazia com que os trovões, ecoassem mais fortes. Raios enfurecidos rasgavam o céu causando temor a todos. O período de estiagem acabara.

Siá Doninha corria pelos aposentos cobrindo os espelhos. Segundo ela, espelhos atraiam raios. Tinha na mão um terço e um ramo bento. Cantava uma reza em latim nada compreensível, tudo para agradar Santa Bárbara a quem pedira para livrá-la da tempestade. O seu medo era tanto que fizera os quatro netos permanecerem sentados na sala. Alegava que seus corpos em movimento podiam atrair raios. As netas mais velhas seguiam contritas, os movimentos da avó, pareciam rezar. De seu canto, Menina observava quieta e não entendia a aflição da avó. Se ela tinha tanto medo de tempestade, por que então fizera novena pra chover? Gente grande era complicada. O pior de tudo era ter de ficar parada. Ter medo de chuva não fazia sentido. Enquanto pensava Menina viu Siá Doninha tirar água do pote e também do filtro e em vez de beber, jogava a água pela janela. Curiosa, aproximou-se da avó e perguntou por que fazia aquilo. Siá Doninha ignorou-a. Maria pacientemente explicou:

_ É pru modi acarmá a tempestade! Ela joga a água mansa na tempestade pra modi acarmá...

Menina prosseguiu:

_ Uê! Eu não sabia que a gente deve molhar a chuva quando tá com medo. Quem foi que disse isso pra vovó? Molhar a chuva é a coisa mais boba que eu já vi. A chuva não tá com sede nem nada...

_ Fica quieta Menina! A vó doceis tá rezano. Num atrapaia - Pediu a moça.

_ Eu só quero saber por que ela está fazendo isso. Quando o papai chegar do trabalho eu vou perguntar pra ele. Aposto que isso é besteira. Eu queria sair daqui e olhar a chuva.

A opinião do pai era muito importante para Menina. No seu entender, ele sabia de todas as coisas. Nenhuma pergunta que fizesse a ele, ficava sem resposta. A avó, quando consultada, dava respostas que não faziam sentido. Esta era a opinião da garota. Também a avó não era de dar muita conversa pra ela, preferia, ostensivamente, os outros netos. Menina olhou pras irmãs e viu que elas continuavam estáticas e com as caras de patetas. Impaciente cutucou as costelas do irmão, e falou baixinho:

_ Zico! Vamos sair daqui! Eu não quero ficar vendo essa reza. A vovó está igual galinha de angola, toda assustada. Nós vamos ficar aqui parados como bobos?

O garoto, mais prudente, respondeu.

_ Não é reza não! É só a vovó com medo da chuva. Se a gente sair ela vai brigar.

_ Ela nem vai ver. Tá ocupada jogando copos de água pelas janelas. Não vai ver nada.

_ Tá chovendo muito, pra onde a gente vai?

_ Pra janela da outra sala, olhar a chuva...

_ Quem vai primeiro? Quis saber o garoto.

_ Você, que é pequeno. Eu fico vigiando a vovó.

Silencioso, o menino esgueirou-se encostado à parede e rápido escapou. Menina fez à mesma coisa e num segundo estava na outra sala. Com cuidado, pegou duas cadeiras e colocou-as juntas à janela. Agora era outra coisa. Eles podiam observar tudo o que estava acontecendo lá fora. A chuva continuava forte. A ventania balançava as árvores perigosamente em direção da casa. A estrada estava totalmente coberta pela enxurrada. Tinha-se a impressão de que a casa flutuava nas águas. Os raios continuavam caindo. De repente, da cozinha chegou o rumor de latas que se chocavam. Curiosos, os dois foram ver o que era. Menina não queria acreditar no que via. No meio da cozinha, Siá Doninha e Maria batucavam nos fundos de uma bacia, com canecas de lata. Foi impossível segurar o riso. Menina gargalhava com a cena. As irmãs, Latide e Liviva, deixaram à pose de beatas e caíram na risada. Que ritual era aquele? Siá Doninha, encabulada com o ridículo da situação, repreendeu os netos e ameaçou castigá-los. Subitamente, após uma trovoada violenta, a chuva parou. Eufóricas, as quatro crianças correram pra varanda. Maria acompanhou-as e, num desabafo orgulhoso, declarou:

_A chuva parô pru modi que nois feiz a simpatia.

Mal terminou de dizer isto, um raio caiu sobre uma das paineiras a trinta metros do casarão. A árvore partiu-se ao meio. O barulho do trovão foi aterrador. Todos ficaram paralisados de medo. Siá Doninha mandou que os netos entrassem de novo e ficassem quietos. Dessa vez eles obedeceram sem protestar. Menina começou a imaginar o que teria acontecido com os habitantes da árvore. Nela havia ninhos de passarinhos. Calangos e lagartixas passeavam pra cima e pra baixo, no tronco... Estariam todos mortos? Que vontade de ir lá fora ver. A chuva voltou a cair em chuviscos finos. Felizmente os trovões haviam cessado. Menina não via a hora de ir lá fora, mas sua avó nunca deixaria.

Maria entrou na sala e anunciou que a merenda estava pronta. Menina pegou o gato Paizinho, que dormia numa cadeira, e acompanhou as irmãs. Zico já estava em seu lugar à mesa. Sentando-se ao lado dele, ela pediu café para a empregada.

_ Minino num bebi café, ocê sabi. Só si fô misturado cum leite. A vó doceis já deu ordis pra num dá.

_ Você é muito chata, Maria! Não faz nada do que eu peço.

Zico intrometeu-se na conversa, tentando ajudar a irmã.

_ Maria, por que você não dá leite com açúcar para o moço, como faz pra mim?

_ Ocê acha qui ela vai querê? Essa Minina é muito injuada.

Menina resolveu fazer sua própria defesa.

_ Eu não sou enjoada e também não gosto de leite com açúcar. Isso é bebida de gente pequena.

_ Moço! A vovó fez bolinhos com canela e açúcar, vamos dar um pouco para os nossos gatos? – interrompeu-a, Zico.

O garoto era assim. Fazia de tudo pela paz, mas também não gostava de ver a irmã chateada. Menina, por sua vez, compreendeu a intenção do garoto e tratou logo de mudar de humor. Dirigindo-se a todos, convidou:

Quando a chuva acabar vamos lá fora ver a árvore do raio? Eu quero ver quem morreu!

Latide, a irmã mais velha, foi logo recusando. Disse que aquilo era bobagem. Liviva gostou da idéia e concordou.

_ Eu quero ver a árvore por dentro! - disse Zico.

Menina ficou curiosa e perguntou por que o garoto queria ver a árvore por dentro.

_ O que você acha que tem naquela árvore? Ela é só uma paineira onde moravam passarinhos, não tem mais nada lá.

_ Tem sim! Eu já vi um calango entrar no buraco que tinha no sovaco da árvore. Agora eu quero ver a casa dele.

A árvore, antes de ser atingida pelo raio, tinha os galhos voltados para cima, como braços estendidos para o céu. Num deles, particularmente, havia uma reentrância semelhante a uma axila.

Liviva começou fazendo ironia com o que ele dissera.

_ Vamos sim! Primeiro nós vamos ver se o sovaco da árvore sente cócegas. Depois eu estou louca pra ver como são os móveis, a cama, tudo o que tem na casa do calango. Vai ver, as cadeiras têm buracos para quando ele sentar, meter aquele rabo verde. Deve ser engraçado mesmo.

Enquanto ela falava, Zico percebeu que a irmã fazendo molecagem e se zangou.

_ Então você não vai lá! Eu sei que tem uma casa de calango e pronto.

_ Não, seu bobo! Calango não tem casa, tem toca! - afirmou Liviva.

_ Toca é a casa de bichos! É a mesma coisa...

_ Não é não! Depois você vai ver, é diferente! Casa é só de gente.

_ Casa não é só de gente. Tem casa de cachorro, tem casa do curral de vacas, tem até casa do chiqueiro de porcos. Todo mundo tem casa.

Menina achou que a discussão sobre casa já estava aborrecendo e os interrompeu. Estava na hora de voltar ao posto na janela. A irmã mais velha, sempre calada, retirara-se para o quarto que compartilhava com a avó. Menina achava Latide muito estranha e introspectiva. Seu ar de mistério era motivo de conjecturas por parte dos pequenos. Liviva era diferente. Ela brincava com eles, subia em árvores, participava das iniciativas deles. O problema era que ela ia todos os dias à escola. Por isto não podiam contar sempre com sua companhia, como agora. Às vezes eles brigavam, mas logo voltavam às boas.

Os três foram pra janela e de lá observavam o estrago causado pelo temporal. Era grande o número de galhos caídos em volta das árvores. Menina pensou na mata em volta da chácara, imaginou os animais feridos. Como será que os animais faziam para proteger-se das tempestades? Seus pensamentos foram interrompidos pelo miado do gato Paizinho que pedia para sair. Não demoraria a escurecer. O gato era como um relógio, todos os dias, no mesmo horário, saía para a mata. Saltando da cadeira, ela foi até à porta e abriu-a. O gato saiu pra varanda e lá fora se espreguiçou longamente; agora ele só voltaria depois do jantar. Menina fechou a porta e comentou com Zico:

_ Sabe, moço! Acho que hoje não vai dar pra gente ver a árvore. Ainda está chuviscando. Daqui a pouco tempo vai ficar de noite, que chato!

_Ah! Moço! Então vamos amanhã bem cedo - respondeu Zico.

Liviva, ouvindo a conversa acrescentou:

_ Oba!! Eu também vou. Amanhã não tenho aula.

Os pequenos, sem noção muito clara de tempo, para eles todos os dias eram iguais, ficaram curiosos e perguntaram quase ao mesmo tempo à irmã.

_ Por que você não vai ter aula amanhã?

_ Porque amanhã é sábado.

_ E o que tem no sábado? - quis saber Menina. Liviva se achou poderosa diante da ignorância da irmã e assumindo ares de importância, respondeu:

_ Sábado parece sexta-feira, mas parece também com domingo. No dia de sábado as pessoas grandes trabalham até meio dia. Depois os homens saem do trabalho, passam no bar e bebem pinga. Têm outros que só compram coisas de casa e balinhas para os filhos, como o papai faz. Depois disto, todo mundo vai pra casa, almoça, vem à tarde, aí todos dormem e aí começa o domingo.

Menina achou a explicação meio complicada e falou com Zico.

_ Depois eu explico pra você o que ela disse. Sábado é diferente mesmo.

À noite, durante o jantar, o assunto foi a tempestade. As crianças contaram para o pai tudo que acontecera na tarde e todos riram muito. Siá Doninha não gostou das brincadeiras de que foi vítima. Ela era muito religiosa e estava convencida de que graças à sua interferência junto aos santos, conseguira que chovesse no último dia da novena e que parasse de chover, tudo isso em um único dia.

No manhã seguinte, logo após o café, os garotos saíram pra frente da casa. Os estragos causados pela chuva tinha sido considerável. Centenas de galhos caídos das árvores se espalhavam em volta da casa. Os pequizeiros quase perderam os frutos todos. Jatobás e aroeiras não pareciam mais às árvores da manhã anterior. Ao ver aquela desolação, Zico exclamou com tristeza:

_ Puxa! As árvores estão carecas.

Liviva apressou-se a explicar para o irmão, porque aquilo acontecia.

_ É assim que Deus corta as árvores, pra elas não crescerem muito e não tocarem no céu.
Ao ouvir isto, Menina indagou:

_ Pra não crescer como aquele pé de feijão, que o papai contou pra gente?

_ É sim, é por isso - concordou Liviva.

_ Com que Deus cortou os ramos? - quis saber Zico.

_ Com a chuva, ora! - disse Liviva.

_ Chuva não corta nada! Foi o vento que quebrou os galhos. Interveio Menina.

_ Nós olhamos pela janela. Ontem à tarde vimos que foi o vento, não foi Zico?

_ Foi sim! Agora vamos lá ver a casa do calango, vamos?

_ É mesmo. Essa hora nem dá mais pra ajudar os bichos que estão machucados. A gente demorou muito - disse Menina ansiosa.

Ao chegarem junto à paineira, Liviva sugeriu que os ramos caídos fossem afastados com cuidado. Podia ser que sob um deles tivesse algum animalzinho ferido. Zico aproximou-se do tronco partido e ficou na ponta dos pés para olhar o interior do mesmo. Depois, passando os dedinhos no ferimento da árvore, perguntou pra Menina:

_ Moço! Vem ver uma coisa, árvore tem sangue?

A garota aproximou-se do tronco rachado e respondeu:

_ Sangue de árvore se chama seiva. Lembra? O papai contou pra gente, quando ele leu a história da deusa grega...

_ Isso está doendo na árvore? Ela está toda espetada.

Realmente, o raio deixara a paineira com a aparência de um porta-flechas, cujas pontas afiadas apontavam para o alto. Menina tocou com o dedo indicador em uma das pontas e concluiu:

_ É claro que está doendo. O raio foi muito ruim com ela. Agora esta árvore vai crescer só de um lado, vai ser corcunda.

_ Corcunda como aquele mendigo que a gente viu na calçada da padaria do tio Francisco?

_ É sim. Corcunda como aquele homem.

_Então eu não venho mais aqui. Eu fiquei com medo daquele homem...

Liviva interrompeu a conversa dos pequenos para anunciar que encontrara algo.

_ Olhem só! Achei um sapo cururu. Ele está morto.

Os dois irmãos se aproximaram dela. Menina observou:

_ É um sapo amassado. Foi o galho que fez isto?

_ Não sei! Coitado, tá todo seco.

_ Ah! Então ele morreu já faz tempo.

_ Não importa! - disse Liviva - A gente não achou nenhum outro bicho aqui, nós vamos ter de cuidar do enterro dele. Se ele não for enterrado não vai pro céu.

Zico ficou um pouco desconfiado. Ele não conhecia um cemitério. Sabia apenas que pessoas mortas iam pra lá e que os mortos viravam fantasmas. De fantasmas ele tinha muito medo. Discordou logo da idéia.

_ Eu não vou não! A vovó disse que meninos não vão a cemitérios.

_ É cemitério de mentirinha, lá no areal, perto dos buritis. Não precisa ter medo, seu bobo! - informou Liviva.

Ela estava muito animada com a idéia de enterrar o sapo. Assim, resolveu acalmar o irmão e distribuir tarefas entre eles, objetivando o funeral.

_ Zico! Você vai pegar a caixa de sapatos onde estão guardados aqueles ossos de rabo de vaca. Aqueles que você brinca.

_ Não senhora! Não são ossos. São meus bois de brinquedo. Não vou deixar botar este sapo seco dentro da caixa dos meus bois.

Ao ver a preocupação do garoto com o destino da “manada”, Menina falou com ele.

_ Pode deixar, Zico! Eu pego a caixa onde eu guardo os meus besouros chifrudos. É igual.

Liviva seguiu dando ordens.

_ Vamos ter que arranjar velas, flores e também fazer uma cruz.

_ Pra quê uma cruz? – quis saber Menina.

_ Porquê toda sepultura tem que ter uma cruz.

Respostas assim, jamais convenciam a pequena que queria saber a razão de tudo.

_ Pra que serve a cruz? - insistiu.

_ Se não tiver a cruz a pessoa não vai pro céu.

_ Mas sapo não é “pessoa” e também não vai pro céu.

Menina estava disposta a contestar. Zico, ouvindo a conversa delas, encerrou a questão de forma simples.

_ Sapo vai pro céu sim! Teve até uma festa lá e ele foi. A vovó contou essa estória pra gente.

Encantada com a ingenuidade do irmão, Menina deixou-se convencer. Só restava entrar na brincadeira de Liviva. Com certeza seria uma manhã divertida. Decidida, entrou correndo na casa, foi até o quarto e pegou a caixa onde estavam os besouros. Após esvaziá-la, colocou os besouros no vidro onde havia aprisionado alguns vaga-lumes. Em seguida, procurou uma vela no quarto da mãe. Não encontrou nenhuma, mas viu uma lamparina sobre a cômoda e estendeu a mão para apanhá-la. Mas logo desistiu, pois as lamparinas eram úteis. Se não fossem as lamparinas, ninguém poderia sentir-se seguro à noite. Seria melhor procurar no quarto a avó. Mas ali, encontrou a irmã Latide, a soturna. Como quem não queria nada, procurou aproximar-se do altar dos santos da avó. Quando estendeu a mão pra pegar a vela, a garota alertou-a: “Se você pegar qualquer coisa daí eu chamo a vovó”. Menina desistiu da idéia, mas, ao sair do quarto, mostrou a língua pra irmã. Então foi até à cozinha e pediu uma vela para Maria.

_ Pur causo di que ocê percisa di uma vela, Minina?

_ Deixa de perguntas. Eu preciso de uma vela e pronto!

_ Num dô não. Só si ocê dizê pra qui é.

Achando que Maria ia ceder, a garota contou porque precisava da vela.

_ É pra usar no enterro do sapo, um amigo nosso.

_ Ocê tá doida, Minina! Isso faiz má! Cruiz Credo. Num si podi brincá cum sapo.

_ Ele não tá brincando. Nós é que estamos brincando com ele. Me dá logo a vela, a Liviva tá esperando.

_ Num dô! Minino num brinca cum fogo, inda mais prum pecado iguá. Si a vó doceis discobre...

Decepcionada, Menina saiu batendo os pés.

_ Nunca mais falo com você. Tá bom, Maria?

Saindo à procura da irmã e de Zico, ela os encontrou bem afastados da paineira. Haviam ido procurar flores. Encontraram poucas. Assim mesmo eram flores de aboboreiras e alguns jacintos. A chuva do dia anterior havia despetalado as poucas flores da chácara. Menina entregou a caixa pra irmã e disse que não fora possível pegar uma vela. Liviva encaminhou-se para o lugar onde havia deixado o sapo e o colocou na caixa. Zico quis ver o sapo na caixa e depois comentou:

_ Nossa! Ele parece um chinelo velho.

_ A Maria falou “Cruz Credo”, por que eu pedi a vela para o sapo - lembrou Menina.

_ Então não vamos mais chamá-lo de sapo - sugeriu Liviva.

_ Que nome a gente põe nele?

_ Ludovico! Sapo Ludovico.

_ Não! Tira o sapo do nome dele - pediu Menina.

_ Como vai ser o outro nome? Eu já falei o primeiro, agora você fala o outro.

Mas quem falou foi Zico.

_ Chinelo. Ludovico Chinelo!


As garotas acharam o nome muito apropriado e bonito. Agora só faltava encontrar alguma coisa que substituísse a vela. Tagarelando, os três se encaminharam para o areal. Pela estrada encontraram alguns casulos que seriam usados como velas. Ao chegarem ao local, Liviva assumiu a cerimônia do enterro de Ludovico Chinelo. Começou dando ordens para os irmãos:

_ Menina, você e o Zico vão rezar. Eu vou cavar a sepultura e chorar.

Menina protestou. Disse que não sabia rezar e quis também saber o porquê do choro. Como nenhum deles havia visto um enterro, Liviva explicou:

_ Nos enterros as pessoas choram porque ficam tristes. É por isso. Mas o choro tem que ser alto.

_ E as flores? Pra que são?

_ São para alegrar o defunto e enfeitar o caixão - respondeu Liviva.

_ Mas pra que alegrar o defunto se ele está morto e as pessoas estão tristes? E pra que enfeitar? Se você vai enterrar, ninguém vai ver nada.

_ Ih! Também você que saber tudo, Menina! Eu não sei nada, só sei que é assim que as pessoas fazem.

Liviva terminou de cavar, pegou a caixa com o sapo e colocou dentro do buraco feito na areia. Após cobri-lo, ela colocou uma flor de abóbora sobre o montinho. Menina não estava mais gostando de estar no areal e muito menos da brincadeira. O areal era fora do terreno da chácara e estava rodeado de mata fechada. Assim, enquanto a irmã fingia chorar alto e Zico rezava a Ave Maria que Siá Doninha lhe ensinara, ela ficou atenta aos rumores que vinham da mata. Liviva colocou um casulo de cada lado da sepultura para fazer de conta que eram velas.

Zico gostou de fingir que chorava e acompanhou a irmã naquele choro cada vez mais alto. Liviva disse que eles deviam ficar ajoelhados em volta do túmulo de Ludovico Chinelo. Menina preferiu ficar de pé. Tentando captar os ruídos da mata, ela usou as duas mãos como protetores de orelha. Desse modo, o barulho que os irmãos faziam não a impedia de ouvir os sons produzidos por animais, principalmente os dragões, cuja existência ela só ficara sabendo na história que o pai contara pra eles, na noite anterior. Liviva chorava como uma carpideira. Depois se lembrou de que não havia feito a cruz e improvisou uma com dois pedaços de gravetos. Lamentou por não ter levado pregos e martelo e decidiu fincar os dois gravetos na areia, em forma de xis, justificando: - “cruz de bicho é assim mesmo, diferente de cruz de gente”. Em seguida, recomeçou a chorar alto dizendo:

- “Ah! Meu amigo! Não tem ninguém da sua família aqui. Mas eu vou sentir a sua falta. Você foi muito importante! Você me emprestou dinheiro. Não tem amigo como você”.

Enquanto a irmã tecia elogios a Frederico Chinelo, Menina olhava em torno, incomodada com o barulho que os irmãos faziam. Justo no momento máximo do pesar de Liviva, ela ouviu um rugido vindo de uma moita localizada atrás da irmã. Preocupada, pediu à garota que chorasse mais baixo. Ela não deu importância e continuou o teatro. Menina pegou no braço de Zico e apelou pra ele:

_ Moço, fica quieto! Tem alguma coisa rugindo na moita atrás de vocês.

O garoto calou imediatamente e perguntou.

_ É o fantasma do Ludovico, é?

_ Não! Fantasma não ruge. Deve ser um monstro, um caipora...

Menina falava em voz baixa e Liviva continuava chorando. O rugido foi ouvido novamente. Zico levantou-se rápido e abraçou-se à irmã. Os dois sentiam medo. O rugido ficou mais forte e se aproximava do lugar onde eles estavam. Dessa vez Liviva também ouviu. Agora era ela que fazia sinal de silêncio para os irmãos. Menina olhava fixamente para a moita de onde provinham os rugidos. Desse modo ela viu os olhos verdes, maiores que os olhos do gato Paizinho. Liviva levantou-se. Menina viu os olhos ameaçadores. Eles estavam plantados numa cara redonda coberta de pelos negros. As três crianças deram-se as mãos e saíram dali em desabalada carreira. Correram sem olhar pra trás. Tudo o que elas queriam naquele momento era a proteção da casa e dos adultos. Quando alcançaram a porteira de entrada, pararam para respirar. Liviva, ofegante, comentou:

_ Ainda bem que o bicho não veio atrás da gente.

_ Vai ver, ele preferiu comer o Ludovico primeiro, ou então... – Menina fez um ar de suspeita.

_ Então, o quê? - se interessou Liviva.

_ Então vamos logo pra casa. Eu quero ver se todo mundo tá lá - concluiu Menina, com a mesma expressão de suspeita.

Ao entrar na casa, ela foi gritando o nome de cada um:

_ Maria! Latide! Vovó! Mamãe! Cadê vocês?

A primeira a aparecer foi Maria, seguida de Latide e de Siá Doninha. Menina começou falar desordenadamente. Zico e Liviva tiveram a mesma idéia e a situação ficou difícil de ser compreendida.

_ Vovó! Maria! Lá no enterro do Ludovico, quando a Liviva tava chorando, um... Um...

Liviva tomou a palavra e complicou mais ainda.

_ O Zico tava rezando e eu tava enterrando o Ludovico, ai a Menina falou... Que... Que...

_ Não! Ela falou foi comigo! - interrompeu-a Zico.

Siá Doninha, querendo entender o que se passara, deu um grito forte.

_ Pára! Pára todo mundo! Fala um de cada vez! Que estória é essa de enterro e quem é esse Ludovico?

Menina respondeu intimidada.

_ É um amigo da gente que tava amassado. A Liviva disse que o nome dele era Ludovico. Aí ela disse que era pra enterrar o Ludovico pra ele ir pro céu, aí, aí...

A avó voltou a impacientar-se e falou com Liviva.

Diga-me já o quê ou quem é Ludovico e o que foi que aconteceu pra vocês estarem assim como se tivessem visto alma do outro mundo. O que foi que vocês aprontaram dessa vez?

_ A gente achou ele e aí... Aí...

Liviva começou gaguejar. Ela também tinha medo da avó, sabia o quanto ela era severa. Siá Doninha pegou-a pelo braço e intimou-a a dizer o que tinha acontecido com eles. De uma só vez a garota falou:

_ Tinha uma fera lá no mato e ela quase pegou a gente.

_ E que estória é essa de enterro?

_ A gente tava lá pra enterrar um sapo seco...

Menina já estava mais calma e tomou a palavra da irmã.

_ Não era uma fera! Era a Mamãe! Cadê ela? Aquele bicho tinha olhos verdes como os da mamãe. Aposto que era ela que foi assustar a gente e...

_ Não fui eu não! Eu estava o tempo todo no meu quarto.

Josefa surgira de repente na sala. Menina, ainda suspeitando da mãe, insistiu:

_ Foi a senhora sim! Vai ver a senhora já escondeu a fantasia peluda que estava usando... A senhora já vestiu até roupa de diabo, lembra? – a garota jamais esqueceria a noite em que a mãe, para assustá-los e de acordo com os adultos da casa, vestiu-se de diabo, aparecendo junto da fogueira, em volta da qual D. Mozart contava estórias para os filhos.

Zico correu pra mãe e abraçou-se a ela protestando.

_ A mamãe não é feia como aquele bicho. Ela não faz aquele barulho de onça!

Só então Menina se deu conta do perigo que todos haviam passado. O garoto tinha razão. Aquela coisa poderia mesmo ser uma onça preta. O rugido era de onça. Muitas vezes seu tio Antônio a levara pra varanda, à noite, para ouvir o rugido das feras, nas matas próximas à chácara. Os adultos ficaram admirados com a intuição de Zico. Agora todos queriam ouvir detalhadamente o que tinha se passado com eles, fora dos domínios da chácara. Após relatarem o ocorrido, as três crianças foram terminantemente proibidas de se afastarem dos limites da chácara, a não ser em companhia de um adulto.

Passada a agitação, todos retomaram as brincadeiras de costume. Menina, de vez em quando pensava na aventura vivida naquele dia. Mas uma coisa, continuava a intrigá-la: por que a tal fera não viera atrás deles?







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