Luís Gama (1830-1882). Parte do poema “QUEM SOU EU?”
Eu bem sei que sou qual grilo
De maçante e mau estilo.;
E que os homens poderosos
Desta arenga receiosos
Hão de chamar-me – tarelo,
Bode, negro, mongibelo.;
Porém, eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote minha gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui nesta boa terra
Marram todos, tudo berra.;
Nobres, Condes e Duquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, veadores.;
Belas damas emproadas,
Repimpando principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança.;
Guardas, Cabos, Furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar e guerra,
- Tudo marra, tudo berra –
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos anjinhos
Também há muitos bodinhos.
O amante de seringa
Tinha pêlo e má catinga.;
O Deus Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas.;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino.;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão.;
Nos lundus e nas modinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria.;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!
Luís Gama, autor de “Trovas Burlescas”.
Filho de um fidalgo e uma escrava, ainda criança foi vendido pelo próprio pai, tendo que fazer o percurso a pé de Santos a Campinas até a residência de seu dono. Dali fugindo, sentou praça (serviço militar), mas acabou sendo expulso do exército e, como era autodidata, apesar da discriminação, tornou-se advogado e um grande defensor de escravos, que eram suas causas principais.
Nota: o negro era tratado de forma pejorativa como bode, por seu “cheiro de bode”. Daí esta sátira, como muitas outras que escreveu para demonstrar seu inconformismo para com as elites de sua época.
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