CULTURA NOSSA DE CADA DIA
Eletrizadas, as crianças esperam o grande momento. O garçom coloca a iguaria na mesa, um delicioso prato à base de ratos. O pai, a mãe e os filhos olham regalados para a enorme e suculenta ratazana ao molho, preparada como só a arte da cozinha chinesa consegue. É um almoço magnífico e assim como essa família num restaurante do sudoeste chinês, outras ajudam a consumir num final de semana em média 3000 ratos, o que equivale a 500 quilos de carne do apreciado roedor.
Na província de Guangdong, o prato mais solicitado é carne de cachorro. Isso é cultura! A tradição gastronômica chinesa ordena: comer qualquer espécie de animal. Em Pequim escorpiões chegam à mesa, regados com inesquecível molho picante. Uma delícia, como as baratas na Índia, nobres iguarias, ou as saborosas lesmas no México e também aranhas em outras regiões.
Walt Disney transformou um animal asqueroso, o rato, num animal querido. Nos velhos tempos, li a obra de Ariel Dorfman e Mattelart, fiquei odiando o Mickey.Por questões imperialistas, claro. Também por ser o Mickey de fato um rato.
Mas, calma Guilhermina! Não é bem assim! Às vezes é bom ser radical, como Salman Rushdie por exemplo, mais que bom, é necessário e prudente.Isso mesmo, é prudente ser radical em certas circunstâncias. Mas, nem sempre. No caso da cultura, nem tentar, só em alguns casos, como veremos a seguir, no quinto parágrafo.
Ora, se a barata é uma iguaria entre os hindus, além de ser nobre no sistema simbólico de castas, então é lógico que ser asqueroso é uma questão cultural.
A população da China é gigantesca, medonha, há medidas drásticas de controle de natalidade, você come todos os bichos, até os insetos, tudo vira iguaria.No Brasil, país de fartura e luxo, descaradamente se joga fora quase tudo. Pelo menos em São Paulo. É a casca da melancia, as folhas, como a da beterraba, etc. Está aí uma questão cultural. O chinês, ao contrário, come o reino animal.É claro que vou ficar bravo se um chinês comer o meu cachorro, pois estamos no meu país e aqui vigoram diferentes leis culturais.
Nos dias clandestinos um jovem preso comia a casca da banana.A necessidade cria a cultura.
Tudo isso para dizer que devemos respeitar quase sempre a cultura alheia.Vamos ver o “quase sempre”:
Quando mulheres são mutiladas, o clitóris extirpado para a anulação do prazer, uma cultura que faz isso preciso ser questionada, denunciada, modificada. Mas quando a cultura de uma gente não prejudica o ser humano, não o escraviza e não ofende a sua dignidade nem lhe mutila o corpo, deve ser respeitada, pois é a cultura do outro. Nem sempre foi assim em nossa terra.
Cada um de nós carrega a mancha do passado, a destruição pelos povos europeus da cultura do povo negro e dos povos indígenas.Serão necessários quantos séculos para que se refaça um pouco do que foi destruído? Não adianta dizer: não tenho nada com isso, nunca fui colonizador, nem católico eu sou, etc. Ora, todos temos essa dívida, e só esperamos desses povos o perdão e a compreensão de que esse tipo de coisa se trata sempre de “espírito da época”.
Brasil, brasileiro, não se atemoriza nem se incomoda muito com o que acontece na Áustria, mas com o europeu é diferente.Uma mudança política na Áustria que desperte lembranças do passado, lhe afeta diretamente a consciência. Ele fica imediatamente alerta, de prontidão, preocupado, reage, tem medo, se mobiliza. Para o brasileiro o que acontece lá é tão distante quanto vulcão ou terremoto. Outra coisa: para alguns povos, ver uma criança dormindo na calçada é uma visão monstruosa. Em outros povos, as pessoas passeiam naturalmente diante de tal visão. Assim é a cultura do mundo, a cultura nossa de cada dia.
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Autor: Marciano Vasques
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