A arte de chorar-te
Ontem chorei. Chorei, como choro quase sempre. Nem sempre, um choro molhado. Ontem chorei um choro estrangulado, ressequido, mais sentido que muito pranto derramado.
Ninguém notou que eu chorava convulsivamente. Não houve testemunha do meu quase-afogamento na secura.
Lágrimas aliviam, lavam a alma. Lágrimas são solventes, dissolvem mágoas. Lágrimas são coadjuvantes, no processo de abrandar a dor. E lágrimas são aparentes, rolam soltas, irrefreáveis, pela face. Dificilmente representam um monólogo. Os olhos incham, há vermelhidão. Lágrimas são, também, protagonistas. Meu choro seco, não, mas é melhor artista.
Ontem chorei a seco. Tratei amargura como roupa fina. Tecido que requer cuidado redobrado. Sequei minha tristeza à sombra de mim mesma. Depois, a passei a vapor. Temperatura amena, como prescreve a etiqueta.
Ninguém notou que retirei as nódoas e alisei os vincos de meu coração mendigo. Assim como ninguém percebe o estado de penúria em que se encontra: esmolando, mas pedindo pouco. O suficiente para sobreviver.
Ontem chorei. Atravessei o dia, invadi a noite, transcorri madrugada sem conter o choro. Já era hoje, eu chorava. Ainda choro.
Ninguém notou. Nem a fronha de meu travesseiro - cúmplice de meus pensamentos, minha melhor amiga -, perfumada e enxuta, permaneceu, indiferente ao choro que só eu sei, chorei.
No travesseiro ao lado, molhado de suor, marcas de uma noite bem dormida. Tranquila e úmida, notei.
Valéria Tarelho
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