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Contos-->A chegada de Mãe Donna. -- 01/10/2005 - 23:23 (Hull de la Fuente) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este é mais um episódio da seríe "A Menina da chácara".



“A CHEGADA DE MÃE DONA”

Mãe Dona morava com a filha Francisca em algum lugar distante da chácara. Devia ser bem longe mesmo, porque ela chegou numa canoa que tinha até uma casa no meio. Era uma casa de palha, daquelas pra proteger do sol e da chuva. A canoa parou no porto da chácara. O canoeiro deixou o remo de lado, desatou uma vara de bambu que estava amarada ao casco da canoa e enfiou-a com força à margem do rio. Depois, saltou para a terra e amarrou a embarcação ali. De dentro da cobertura de palha saiu uma mulher alta e magra, que, após espreguiçar-se como uma felina, penteou com os dedos, os cabelos ruivos, desamassou a saia do vestido e depois estendeu a mão para a outra mulher que continuava sentada à sombra da casa da canoa. As duas desembarcaram com a ajuda do canoeiro. O homem retirou da canoa algumas malas, todas de pano, eram os pertences delas. A mulher alta olhou pra cima do barranco e viu Menina e Zico que a observavam curiosos. Voltando-se para a companheira de viagem, comentou:

_ Esses dois meninos devem ser os filhos da Josefa, mamãe.

A mulher idosa olhou na direção onde estavam as crianças, pondo a mão em forma de concha sobre os olhos, para proteger-se da luz do Sol. Menina viu um bonito rosto, porém enrugado. A mulher alta voltou-se novamente para os meninos e ordenou:

_Vocês aí! Vão à casa da avó de vocês e peça a ela pra vir receber a mãe dela. Anda, vão logo!

_Quem é a senhora? - indagou Menina.

_Eu sou a Francisca, irmã de sua avó.

_Já tô indo, já tô indo! - disse Menina.

Saltando e correndo como dois cabritos, os garotos chegaram à horta onde a avó trabalhava. Aos gritos foram anunciando.

_Vovó! Vovó! Sua mãe chegou de canoa. Na canoa tem uma casa de palha... Aquela sua irmã comprida e mandona, disse que é para senhora ir recebê-la...

_Aquela minha irmã “comprida e mandona”, tem nome, ouviu? – respondeu a avó, sem contudo, repetir o nome da irmã. Menina também não deu importância.

Siá Doninha deixou o canteiro de cebolinhas de lado, lavou as mãos na água que estava numa lata e enxugou-as no pano branco que portava ao ombro. Menina ficou olhando a avó preparar-se. Ela era uma mulher em torno dos quarenta e sete anos, alta, bonita, olhos claros. Ficara viúva aos trinta e cinco anos e nunca mais tirara o luto. O máximo que se permitia vestir, em termos de tecidos “alegres”, eram os tecidos de bolinhas ou florezinhas brancas em fundo preto ou azul marinho, que o genro, Dom Mozart, lhe presenteava, como o que usava naquele momento. Embora não admitisse, como toda mulher, Siá Doninha era vaidosa. Naquele momento, por exemplo, antes de ir ao encontro da mãe e da irmã caçula, teve o cuidado de ajeitar os cabelos presos num coque e alisar a saia. Sua irmã fizera à mesma coisa, eram mulheres vaidosas. Siá Doninha passou a ponta do pano branco no rosto e encaminhou-se para a beira do rio.

As mulheres se encontraram no meio da ladeira. Menina viu a avó abraçar-se à irmã e depois à mãe. Siá Doninha tomou a mão direita da mãe e beijou-a. A velha senhora a abençoou e num gesto de carinho alisou a cabeça da filha. Elas eram muito formais. Menina observava silenciosa. Em seguida se encaminharam para o casarão. O homem da canoa seguiu-as com a bagagem. Só quando chegou a casa é que Menina aproximou-se da bisavó. Ela e Zico aproveitaram-se do momento em que a encontraram sozinha na sala de jantar. Eles ficaram admirados com a brancura da pele da mulher. Ela era tão bonita. Os cabelos totalmente brancos, presos numa longa trança e o rosto fino, exibia ainda traços perfeitos. Mas o que chamava a atenção mesmo eram seus olhos azuis. Menina não resistiu e com as pontas dos dedos tocou a face direita da mulher e disse:

_ Oi! Quem é a senhora? O que a senhora é minha? O que veio fazer em minha casa?

A mulher olhou-a docemente e respondeu:

_Eu sou a Mãe Dona. Sou a sua bisavó. Eu vim visitar vocês. Como é o seu nome?

_Todo mundo me chama de Menina, mas quando eu for pra escola eu vou ter outro nome. E este aqui é o Zico, ele também vai ter outro nome, ele é o meu irmão pequeno.

Calado a observar a bisavó, Zico respondeu ao comentário da irmã:

_Você também é pequeno, moço. Você só tem seis anos e quem tem seis anos é pequeno.

Mãe Dona reparou que o garoto chamou a irmã de “moço” e quis saber o motivo. Menina explicou-lhe:

_É porque o Zico não tem irmão, só tem irmãs, aí a gente brinca de faz-de-conta que eu sou o irmão dele.

_ Então é por isso que você está usando roupas de menino? - quis saber a senhora.

_É sim! Mas também é bom usar essas roupas. Mãe Dona, como é o seu nome de verdade? Por que a senhora tem esse nome? Mãe Dona?

_Nossa Senhora! Você pergunta muito. O meu nome é Ana Isabel. Eu sou chamada assim porque eu sou a mulher mais velha da família. “A prima donna.” A primeira mulher. É importante ser a primeira mulher da família, você entende?

_Não! Mas não faz mal! E aquela filha grande da senhora? O que ela é minha?

_ Qual delas, a Emília ou a Francisca? Você...

_ Quem é Emília? Interrompeu Menina.

_ Emília é a sua avó. Você não sabe o nome dela?

_Quando eu era pequena eu pensei que o nome dela fosse vovó, mas todo mundo a chama de Siá Doninha...

_ Doninha é o apelido dela. Ela é a minha primeira filha, por isso a chamam de “Doninha”, porque vem depois de Mãe Dona. Você entendeu?

_Não. A senhora fala engraçado! Mas eu gosto da senhora, mesmo assim. E aquela outra filha, o que ela é minha?

_ A Francisca é a minha filha mais nova e é sua tia-avó.

_ Eu nunca tive tia-avó. Como é que eu chamo uma tia avó?

_ Chame-a de “Tia Chica”.

_ Ah! É fácil! É como o meu tio Antônio?

Menina estava encantada e gostando realmente daquela mulher que dava atenção a ela. Pra sorte sua, Siá Doninha e a irmã continuaram no interior da casa. Procurando ser simpática, convidou a bisavó pra sentar-se na varanda. De mãos dadas com Mãe Dona, ela e Zico deixaram a sala. Na varanda, Mãe Dona foi acomodada num banco. Zico correu até o quarto e trouxe de lá a caixa com os bois de rabada, para mostrar pra bisavó. Menina, não querendo ficar em desvantagem, pegou o gato Paizinho e o deitou no colo da velha senhora. Mãe Dona espirrou forte e o gato assustado tentou descer das pernas dela, mas suas unhas ficaram enganchadas na trama do tecido da saia longa. Mãe Dona continuou espirrando e o gato, desesperado com o barulho provocado pelos espirros, cravou as unhas na perna e no braço dela. A dor a fez soltar um grito agudo. Num segundo, os que estavam dentro da casa se encontravam ao lado de Mãe Dona.

Menina conseguira soltar as unhas do gato e agora o segurava nos braços. Francisca, aflita, quis saber o que acontecera. Mãe Dona estendeu o braço ferido em resposta à pergunta da filha. Siá Doninha viu as unhadas de gato e, preocupada, perguntou se apenas o braço estava ferido. Como resposta, Mãe Dona levantou um pouco a saia e todos viram os arranhões. Menina viu muito mais do que os arranhões. Seus atentos olhos viram que a bisavó usava duas anáguas sob a saia, calçava botinas e possuia pernas muito brancas, longas e finas. A garota olhava tudo muito apreensiva, sabia que logo seria descoberta por isso resolveu falar logo.

_Não foi culpa do Paizinho, vovó! Foi a Mãe Dona que espirrou em cima dele, ele tem nojo de catarro, a senhora sabe...

Siá Doninha olhou severa para a neta e perguntou:

¬_Como foi que esse gato veio parar nas pernas de minha mãe? Até parece que alguém o colocou ali. Isto foi obra sua, sua capeta?

_Eu já falei vovó. Eu dei o meu gato pra ela brincar, mas aí ela espirrou nele...

Francisca, demonstrando aborrecimento, falou com a irmã:

_Doninha! Não deixe esses meninos pensarem que a nossa mãe é brinquedo deles. A mamãe não pode ficar perto de gatos, ela tem bronquite e espirra muito. Mantenha esses gatos longe dela.

Maria trouxe a caixa de medicamentos e Siá Doninha limpou os ferimentos e medicou a mãe. Menina chamou o irmão de lado e comentou:

_Moço! Você viu como é a pele da Mãe Dona? É toda amarrotada e pintada. Ela parece uma joaninha, você não acha?

_Não acho não! Joaninha é vermelha com bolinhas pretas e a Mãe Dona não é vermelha com bolinhas pretas.

_Porque ela é outro tipo de joaninha, uma joaninha do contrário. Ela é branca com pintinhas marrons. Será que lavando com sabão e água quente as pintas vão sair? É assim que a vovó tira o sujo das roupas encardidas.

Zico ouviu a irmã e lembrou-a.

_Moço! Essa tia Chica não quer que a gente brinque com a mãe dela. Como é que a gente vai fazer?

_Eu já sei! - Exclamou a garota - Vou pedir pra Maria ferver água e por na bacia do banheiro, aí gente leva a Mãe Dona pra lá e esfrega sabão até sair todas as pintas.

_ Que dia você vai fazer isto?

_Não sei! Hoje o Paizinho já arranhou as pernas dela. Vamos primeiro falar com a Maria. Depois a gente pede pra essa tia Chica. Acho que ela vai deixar se eu contar pra ela que a Mãe Dona vai ficar mais bonita.

As rugas e as sardas da bisavó, desde o primeiro momento, foram um incômodo pra Menina. Ela achava que uma pessoa bonita como a bisavó não podia ficar com a pele “suja”, como estava.

Nesse meio tempo, Maria voltou à varanda pra dizer que o almoço estava pronto. Aquele almoço mais cedo, era para os três viajantes. Menina acompanhou a bisavó até à mesa. Tinha-se tomado de admiração pela bela senhora. O que ela não sabia era que a bisavó já estava esclerosada e alternava momentos de lucidez com outros de total idiotice. Foi durante o almoço que percebeu que algo de anormal acontecia com Mãe Dona. Em determinado momento da conversação, a velha senhora perguntou pra Francisca, onde é que elas estavam. Francisca respondeu que ali era a chácara de Dom Mozart. Dali a poucos minutos Mãe Dona fez a mesma pergunta. Quem respondeu dessa vez foi Emília:

_A senhora está em minha casa, mamãe! Na casa de sua filha Doninha, está lembrando agora?

Mãe Dona pousou os olhos azuis na filha e perguntou:

_Mas a Emília não mora em Caxias, lá no Maranhão?

Na terceira vez que a bisavó perguntou a mesma coisa, Menina entristeceu-se, saiu da mesa e foi pra cozinha. Maria poderia explicar o que se passava com a bisavó. Siá Doninha jamais daria confiança de responder a ela o que se passava com Mãe Dona.

Maria estava servindo o almoço para o canoeiro. Menina chegou a tempo de ouvir um pedaço da conversa deles. Admirada por ouvir outra pessoa falar como a empregada, foi logo perguntando:

_Ele é seu irmão, Maria?

A moça olhou-a sorrindo e respondeu:

_”Pru modi que ocê mi pregunta isso? A Minina acha ele aparecido cumigo?”

_Ele não parece com você. Mas ele fala como você.

Logo a lembrança do que a trouxe à cozinha, fez com que o assunto com a empregada fosse desviado.

_Maria! Você acha que a mãe da vovó é boba?

_“Qui diacho di pregunta é essa? Pru modi que ocê tá falano isso?”

_Sabe? Eu tava perto dela lá na sala e toda hora ela perguntava a mesma coisa para as filhas dela. Por que ela faz aquilo?

_“É pur causo di qui a bisavó doceis já tá muito véia. Ela já devi di tá caducano. Oceis devi di tê paciença, purcauso di qui tein veiz que ela si alembra das coisa. Asdispois ela si isqueci tudinho.

_E se ela tomar injeção, ela fica boa? Então, se ela é caduca, não serve pra brincar com a gente... Gente caduca brinca?

O canoeiro comia calado, mas intrometeu-se ao ouvir o que Menina disse:

_“Vosmicê, siá Menina! E tamém vosso irmão, devi di intendê qui os mais véio num é pa brincá cum minino, não. Vosmicê tomi tento, modi que siá Francisca é muito braba e si arrelia divera cum queim ofende a sinhá Mãe Dona”.

Menina não gostou nem um pouco da intromissão dele.

_Eu não estou falando com o senhor. Eu estou falando com a Maria, porque ela é minha. E a Mãe Dona também é minha bisa. Aquela tia Chica disse pra vovó que elas vão ficar uns tempos aqui. Eu vou brincar com a Mãe Dona, sim!

O canoeiro comia rápido, pegava os pedaços de carne com a mão e depois lambia os dedos grossos, de unhas encardidas. Menina virou o rosto pra não ver e voltou a falar com Maria:

_Depois você ferve água e ajuda a gente a dar banho na Mãe Dona?

_“Ondi ocê viu dizê qui minino dá bain in gente grandi? Dexa a vó doceis sabê disso”.

_Mas você é grande, Maria. Você pode sim. Eu e o Zico vamos tirar aquelas pintas de ferrugem que ela tem nos braços e no pescoço, você ajuda?

O Canoeiro intrometeu-se novamente:

_“Siá Maria, antis de vortá pro batenti, vô falá cum siá Francisca ondi foi qui ela vei amarrá os burro. Si ela cuchilá, essa cabrita vai rancá o coro da pobre véia.”

De costas para o homem, Menina respondeu ofendida:

_Eu não sou cabrita! O senhor é que é. E a Mãe Dona não tem couro, ela tem pele. Tomara que a Boiúna vire a canoa do senhor lá no meio do rio.

Menina saiu raivosa da cozinha e foi ao encontro de Zico, que ainda brincava com os ossos de rabada. Ela estava tão zangada que nem viu a fileira de ossinhos que o garoto formara junto ao banco e pisou em alguns deles. Zico protestou:

_Hei, moço! Olha o que você fez! Matou um monte de bezerros com o seu pezão.

_Eu não matei nada! Pode olhar! Tá tudo igual. Você também está me chateando como aquele homem nojento da canoa.

O menino levantou a cabeça e olhou para a irmã. Ele conhecia aquela expressão afogueada. Quando a irmã cruzava os braços na altura do estômago e fazia aquela cara, significava que estava com muita raiva.

_O que foi que ele fez moço?

_Aquele “maxixe” disse que vai falar pra essa tia nova que a gente quer descascar a Mãe Dona. Depois me chamou de cabrita.

_Por que você chamou o homem de “maxixe”?

_Porque ele parece um maxixe. Ele é todo cheio de espinhas e é feio, ele...

Menina interrompeu o que estava dizendo quando avistou a mãe e o pai, que retornavam das compras que tinham ido fazer no almoxarifado da Fundação. Num salto, saiu correndo e foi ao encontro deles.

_Papai! Papai! O que o senhor trouxe pra mim? O que o senhor comprou hein?

Zico também veio ao encontro deles e, ao contrário da irmã, anunciou a chegada das visitas.

_Sabe, papai? Chegaram uma Mãe Dona e uma Tia Chica. Elas vieram numa canoa que tem uma casa no meio.

Mozart a Josefa se entreolharam sorrindo. O pai dos garotos quis saber por que o menino se referia as duas daquela maneira.

_ Porque a gente não conhece nenhuma delas. Acho que é por isso. O senhor as conhece, papai?

_Sim, filho. Eu conheço. A Francisca é tia da sua mãe, veio para a farinhada. A Mãe Dona é sua bisavó. Já é idosa e vai pra onde a filha leva.

_Ah! Entendi - respondeu com cara de quem não havia compreendido coisa nenhuma.

Dali a pouco, estavam todos reunidos na sala de visitas. Francisca trouxera notícias de outros parentes. Os adultos ouviam interessados, perguntavam por pessoas que Menina não conhecia. A conversa só foi interrompida quando Maria avisou que o almoço estava servido. Francisca acompanhou-os à mesa. Tinha muito que falar.

Latide e Liviva chegaram da escola e foram direto cumprimentar e pedir a bênção de Francisca. A mulher as abraçou efusivamente. Mãe Dona fora para o quarto tirar uma soneca. Menina quis logo saber como que as irmãs conheciam aquela tia e por que ela nunca a havia visto. Pra sua surpresa, Latide respondeu:

- Você só não se lembra dela. Você era muito pequena quando viemos lá de Tesouro. O Zico era ainda um bebê, é por isso.

Menina aceitou a explicação da irmã mais velha e no restante do almoço, limitou-se a ouvir a conversa dos adultos, que programavam os preparativos para a farinhada.

Daí por diante, no casarão só se falava em farinhada, na preparação de forno, etc... Tudo era feito artesanalmente, desde os grandes raladores de latas, presos em pedaços de tábuas, às gamelas enormes que pareciam cascos de tartarugas gigantes, às pás de madeira, que lembravam remos, tudo aquilo era novidade pra Menina. O vai-e-vem de pessoas não cessava. Tia Chica gerenciava tudo, era muito eficiente e mandona. Era ela que contratava pessoas, distribuía tarefas, perguntava, dava ordens, enfim, era a mola de tudo o que se referia à farinhada.


Mãe Dona parecia perfeitamente à vontade no meio daquela agitação. Aparentemente não sentia falta da presença constante da filha, até porque estava sendo objeto das atenções de outros. Siá Doninha, sempre que podia, estava ao lado dela, bem como seus filhos e netos. Desses últimos, Menina e Zico passavam maior parte do tempo com ela. Eles adoravam a companhia da bela senhora. Deliciavam-se com as estórias dela, principalmente porque os lapsos de memória que a acometiam, faziam com que ela misturasse os personagens, dando nova versão às histórias. Isto divertia os pequenos. Mãe Dona muitas vezes, usava expressões desconhecidas para os bisnetos, que riam dizendo que ela falava como Frederico, o polonês. Às vezes eles escondiam seu leque só para vê-la perguntar: “Onde está o meu abano?” Para eles, abano era uma impropriedade da bisavó, pois, abano era, segundo eles, aquele feito de palha, que Maria usava para abanar a lenha no fogão, ou as brasas do ferro de passar roupas. Uma senhora bonita como Mãe Dona, devia usar leque e não abano.

Mãe Dona esquecia, com freqüência, seus nomes e os chamava pelos nomes de outras pessoas. Quando isso acontecia, Menina tomava o rosto da bisavó entre as mãos e suplicava:

_Mãe Dona, por favor! “Descaduca”, senão eu não brinco mais com a senhora.


Algumas vezes o apelo da bisneta funcionava. Buscando a lucidez no fundo da alma, Mãe Dona ressurgia da névoa da esclerose e sorrindo pedia:

-Menina! Vá buscar o pente e penteia os meus cabelos.

Feliz, a garota corria até o quarto da bisa e retornava com o pente para fazer o que ela lhe pedia. Enquanto penteava os longos cabelos de Mãe Dona, Menina separava os cabelos brancos, dos poucos fios castanhos claros e comentava:

_A senhora ainda tem cabelos que não são de gente velha. Eu vou separar os novos dos velhos, assim a senhora não caduca mais. Tá bom?


As mãos delicadas da criança moviam-se na cabeça dela. Era como um cafuné pra Mãe Dona, que adormecia com o suave toque. Menina só se dava conta disso quando ouvia o ressonar da mulher, pois a bisavó dormia de olhos semi-abertos. Foi numa dessas vezes que ela adormeceu que a garota surpreendeu-se com a beleza da avó. Num ímpeto, correu até onde se encontravam Siá Doninha e Josefa e frenética, chamou:

_Mamãe! Vovó! Venham ver uma coisa! A Mãe Dona. Venham logo.

As mulheres, preocupadas, correram pra varanda onde Mãe Dona se encontrava placidamente adormecida e sentada. Sem compreenderem o motivo da chamada, pediram explicações à Menina.

_A senhora não está vendo, vovó? A senhora também não, mamãe? A Mãe Dona! Olhem pra ela. Ela parece Nossa Senhora. Ela é tão bonita.

As duas olharam mais uma vez pra Mãe Dona e reconheceram que a garota tinha razão. Sentada como estava, com os longos cabelos soltos até a cintura, o rosto sereno, corpo ereto e magro, os braços abandonados sobre as pernas e aquele olhar pousado no horizonte dos pensamentos distantes, era a imagem de uma santa.

Siá Doninha ficou comovida com a comparação feita pela neta arteira. Sua velha mãe era verdadeiramente linda. Num repente de simpatia pra com Menina, a avó brincou com ela.

_ Se minha mãe parece uma santa, eu pareço com que?


Menina olhou a avó da cabeça aos pés, deu uma volta em torno dela e sentenciou: a senhora parece uma onça pintada.


A mulher soltou uma gargalhada que foi acompanhada por Josefa.

_Por que eu me pareço com uma onça, você pode me explicar?

_Claro! A senhora tem essa cara zangada, esses olhos verdes de onça, esse corpo redondo e só veste essas roupas escuras com bolinhas brancas, parece uma onça, sim.


Josefa riu do sentido de observação da filha e disse:

_Nós estamos feitas, mãe! Já pensou no que ela pensa de cada um, nesta casa?


Menina aproveitou-se daquele momento de descontração para falar com a avó sobre as pintas de Mãe Dona.

_Vovó, a senhora deixa eu, o Zico e a Maria lavar aquelas pintas dos braços e do pescoço da Mãe Dona?

_Lavar minha mãe? Que bobagem é essa? Tava demorando! Tava demorando você sair com suas idéias doidas. Guarde suas idéias para os seus besouros, pra seus vaga-lumes e até para o seu gato, mas não se atreva a perturbar sua bisavó.

_Mas vovó! A senhora não vê que a Mãe Dona vai ficar mais bonita? Eu só quero tirar a ferrugem da pele dela. Fala com a vovó, mamãe! Explica pra ela.


Josefa olhou séria para a filha e respondeu:


_A Mãe Dona não tem nenhuma ferrugem. Aquelas manchas são sardas e sardas não saem com água. Ou será que você pensa que sua bisavó não se lava? Obedeça aos mais velhos e esqueça suas idéias malucas.


Desapontada, Menina teve que se conformar com a explicação da avó e da mãe. Mas, em sua cabecinha, alguma coisa dizia que aquelas sardas podiam desaparecer.


As pessoas começaram a chegar pra farinhada. Chegavam por todos os meios de transportes: cavalos, carroças, caminhão, e até um carro de bois chegou na chácara. Veio trazendo dois imensos tachos onde seria torrada a farinha. Foi erguido um galpão sem paredes, com cobertura de palha. Construíram dois fornos de barro e neles adaptaram os tachos. Muita lenha foi empilhada lá perto. Menina e Zico circulavam entre aquela gente, que falava o mesmo dialeto de Maria.


No terceiro dia de trabalho, tia Chica, com o rosto avermelhado pelo calor dos fornos, parecia mais bonita. Os grandes olhos verdes brilhavam muito mais que de costume. Os cabelos, naturalmente ruivos, caiam como cascatas ondeadas pelos ombros da bela mulher. Ela dava ordens aos homens e todos obedeciam. As mulheres que descascavam e ralavam mandioca, a olhavam com respeito e admiração. Tia Chica possuía os gestos de um felino magro. “É igual à vovó:” pensou Menina. Ela é uma onça magra. Mas, justamente naquele dia de tantos afazeres, Francisca estava sofrendo. Mal podia se agüentar com dor de dente. De vez em quando, Menina a via afastar-se para junto de um jirau e dali tirar um vidro de remédio. Cada vez que usava o produto, o cheiro ativo de éter se espalhava no ar. No meio da tarde, não suportando mais as dores, Francisca pediu ao sobrinho Antônio, para acompanhá-la ao dentista em Aragarças. O vidro de ácido fênico ficou esquecido lá no jirau. Menina, curiosa, pegou o vidro e o levou para o quarto de Siá Doninha. Da caixa de socorros retirou um chumaço de algodão e o molhou no líquido. Com o algodão preso na ponta dos dedos, chamou o irmão para prová-lo.

_Zico! Tá vendo esse algodão cheiroso? É aquele negócio que a tia Chica tava passando no dente. Abra a boca que eu vou passar em você, nesse seu dente que está para cair.

O cheiro forte do medicamento não entusiasmou o garoto, que recusou prontamente.

_Eu não vou abrir a boca. Este negócio tá cheirando esquisito. Passa você, na sua boca.

_Você tá com medo, é? Tá bem! Eu vou passar no meu dente, depois, se você quiser, eu não deixo você usar.

_Eu não tô com medo, eu só não gosto deste cheiro.


Sem perder tempo, Menina aproximou o algodão do próprio dente. O cheiro entrou pelo nariz dela provocando enjôo. O gosto ardido e adocicado se espalhou da gengiva para a língua. Também o lábio inferior foi atingido pelo anestésico. A pele parecia que estava repuxando. Sem deixar-se impressionar, aproximou-se do espelho pendurado na parede e viu que realmente a pele estava repuxada e ardia ligeiramente. Mas, ao ver a pele esticada, uma idéia lhe veio à mente. Cuidadosamente fechou o vidro e o deixou entre outros da caixa de socorros da avó. Animada, saiu do quarto e foi procurar Mãe Dona. Encontrou-a na cozinha tomando chá com biscoitos de polvilho. Algumas mulheres que trabalhavam descascando mandioca, também estavam fazendo o lanche. Todas pareciam familiarizadas com a velha senhora. Maria conversava animada com todas elas. Mãe Dona não parecia, naquele momento, já estar esclerosada. Menina aproximou-se da bisavó e tocou seus cabelos docemente. A mulher reconheceu o toque e virou-se pra garota.

_ Oh! É você, minha filha? O que você quer?

Sem se incomodar com a presença das outras mulheres, Menina convidou-a para ir até a varanda com ela. Mãe Dona acomodou-se na espreguiçadeira com a ajuda da pequena que foi logo anunciando por que a trouxera ali.

_ Mãe Dona, a senhora quer ficar nova outra vez?

_ Como, Menina? Gente velha não tem mais jeito, como posso ficar nova?

_Eu sei de um remédio que faz gente velha ficar nova. A senhora deixa eu passar no seu rosto e nos seus braços? A senhora vai ficar mais bonita. Eu posso ir buscar?

_Vai buscar, Menina. Quero ver se esse remédio é bom mesmo...

Como um raio ela foi e voltou do quarto de Siá Doninha, trazendo o vidro de ácido fênico e um punhado de algodão. Encontrou o irmão ao lado da bisavó a conversar com ela. Mas ver o vidro na mão da irmã, o garoto advertiu:

_Ih! Moço! Outra vez esse negócio fedorento? O que você vai fazer com ele?

_Eu vou passar na Mãe Dona! Ela vai ficar nova.

_Ela deixou você fazer isso?

_ É claro! A Mãe Dona não é boba. Eu vou passar o remédio e ela vai ficar mais bonita.

Menina estava convencida de que o produto acabaria com as rugas da bisavó, por isso não hesitou nem um segundo, usá-lo. Com o algodão molhado no anestésico, deu início ao tratamento de rejuvenescimento. Ao sentir o líquido na pele, Mãe Dona reclamou de que o mesmo estava frio. Menina convenceu-a de que era daquele jeito mesmo, do contrário, não fazia efeito. A pobre mulher parecia uma criança se deixando levar pelas diabruras da bisneta. Menina pediu ao irmão que arregaçasse as mangas da blusa da bisa e a tranqüilizou.

_ Não vai doer nada, Mãe Dona. A senhora vai ver. Vou passar em suas mãos também.

Novamente ela reclamou da frieza do remédio.

_Ui! Que frio, minha filha. Será que esse remédio é bom mesmo?

_É assim mesmo, Mãe Dona. Depois a senhora vai ficar muito feliz, toda esticadinha...

O algodão foi molhado algumas vezes e usado. A pele enrugada se esticava, mas logo voltava a ficar franzida. Desencantada, Menina resolveu passar logo no rosto, na esperança de que na face o rejuvenescimento seria mais rápido. Quando terminou, Zico, o ajudante, observou que a pele alva da bisavó estava mudando de cor.

_Moço, olha! A Mãe Dona parece uma batata roxa, uma berinjela. Será que foi esse remédio?

_É assim mesmo, garoto. Depois a pele dela conserta. Vamos deixar o remédio lá na caixa...

Nessa altura, a pele de Mãe Dona começava a ficar irritada. A coitadinha se coçava toda e não suportando mais, levantou-se e foi procurar ajuda. Ao ver Siá Doninha e Josefa, que depenavam galinhas para o jantar e disse:

_ Emília! Josefa! Por favor, minhas filhas! Olhem o que está acontecendo comigo. Os meus braços e o meu rosto estão coçando muito...

Siá Doninha olhou pra mãe e assustou-se com o que viu. Imediatamente quis saber o que tinha acontecido com ela.


_ A Menina passou um remédio na minha pele. Um remédio pra eu ficar nova...


Emília não podia acreditar no que ouvia. Enraivecida interrompeu o que a velha mãe dizia.

_ Mamãe! A senhora se deixou enganar por aquela peste? Mamãe, ela é uma criança, como que a senhora acreditou nessa bobagem? A senhora tem menos juízo do que ela. Meu Deus do céu! Josefa faça alguma coisa. Olha o estado da minha mãe. A pele está queimando, coitadinha... Eu mato aquela peste.


Josefa ficou como uma barata tonta, não sabia se acudia a avó ou a mãe. Por fim, as duas levaram Mãe Dona para o quarto e providenciaram cremes e óleos, pra usarem sobre a irritação que se via nos braços e rosto da velha senhora. Depois Josefa pegou Menina pela orelha e a fez mostrar onde estava o remédio que havia passado na pele da bisavó. Ao ver o vidro de ácido fênico, Siá Doninha o pegou e o atirou com muita raiva no braseiro do forno. O vidro explodiu ruidosamente. Foram providenciadas pomadas para aliviar a pele da pobre Mãe Dona, que não parava de se coçar. Quando Francisca voltou do dentista, descobriu que o remédio, inócuo para seu dente, fora eficaz pra queimaduras na pele sensível da mãe. Seus olhos faiscavam de raiva. Mãe Dona parecia alheia a tudo. As pomadas já estavam fazendo efeito. Caduca, mas vaidosa, queria saber se depois daqueles cuidados todos, voltaria a ficar nova. Ao ouvir aquilo, Francisca olhou furiosa para os dois sobrinhos-netos e os proibiu de se aproximarem novamente de sua mãe.


Menina, que apanhara da avó e da mãe, também estava com raiva. Afinal, ela só quisera ajudar à bisavó. Naquele momento, sentindo a pele ardendo pelas chineladas, gostaria de não ter conhecido as duas hóspedes. No que dependesse dela, Mãe Dona seria deixada de lado. A tia Chica era muito antipática. Só restava esperar o final da farinhada, para não ter que vê-la mais.

Por alguns dias Mãe Dona usou as pomadas. Depois a pele ficou marrom e começou a descascar. Quando não tinha ninguém por perto, Menina se aproximava dela para ver se a pele nova estava esticada. Mas Decepcionou-se, pois a mesma só ficou mais fina do que antes. Um seu comentário sobre o ocorrido foi ouvido por Siá Doninha, ao se aproximar para dar o lanche pra mãe.

_ Sabe, Zico? Não adiantou nada eu ter cuidado da Mãe Dona. Veja! A pele dela ainda parece com um jenipapo maduro. Está toda amarrotada.

_ Pois dê graças a Deus por não ter acontecido coisa pior com a minha mãe. Eu podia dar uma surra por dia, em você, sua peste! E pode tratar de sair de perto dela, ou você apanha.


Menina afastou-se das duas e quando se julgou suficientemente fora do alcance, gritou pra avó:

_ Pode ficar com a sua Mãe Dona. Ela não presta mesmo pra brincar! Ela está toda caduca e ainda por cima esquece tudo o que a gente ensina pra ela.


Uns dias depois, um batelão atracou no porto da chácara. Foi carregado com dezenas de sacos de farinha e de polvilho. As malas de pano de Francisca e da mãe, também foram levadas. Quase na hora das despedidas, Francisca resolveu dizer que Emília se aproveitara dela e que a partilha da farinha não fora justa. Siá Doninha não gostou da atitude da irmã caçula. As duas começaram discutir acaloradamente. Menina e Zico se posicionaram para assistir o bate-boca. Achavam divertidas as brigas de adultos e torciam pra que eles também mordessem e puxassem os cabelos um do outro.

Mãe Dona, em sua roupa de viagem, esperava e ouvia a troca de desaforos entre as filhas. Os filhos de Siá Doninha, que estavam ali para as despedidas, tentavam acalmar a mãe e a tia, mas era tudo inútil. Elas pareciam duas onças de olhos faiscantes. Em dado momento, quando já estavam quase se agarrando pelos cabelos, ouviu-se um grito de guerra:

_ ECÔ! ECÔ!

Por aquilo ninguém esperava. A doce Mãe Dona, ágil como uma ginasta, levantou-se do banco e pulou para o meio do terreiro, onde dançou fazendo círculos, como num ritual africano. Só a dança não a satisfez. Para maior espanto da platéia, levantou a saia até a altura dos quadris e sem parar de dançar gritava:

_“Ecô, ecô, ecô! Meu c... é mais bonito do que o seu... Ecô, ecô, ecô!”



O susto das litigantes foi muito grande. A briga parou como num passe de mágica. Ninguém poderia esperar a atitude de Mãe Dona. Menina jamais esqueceu a cena. Aquilo seria comédia? A aristocrática bisavó havia falado um palavrão e dançado como uma galinha de pescoço quebrado, pelo terreiro. Como foi possível uma coisa daquelas? Onde ela encontrou energia? Ela dissera mesmo um palavrão? Somente com o passar dos anos, a garota compreendeu que o ato insólito da bisavó seria a única coisa capaz de por fim a briga das irmãs, Emília e Francisca. A figura da bisavó, a partir daquele dia, entrou pra galeria de pessoas especiais, inesquecíveis. Sua original maneira de por fim à discussão, jamais seria esquecida.








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