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Contos-->"O DIA QUE O SACI MORREU" -- 18/10/2005 - 11:13 (Hull de la Fuente) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Este episódio faz parte da série "A MENINA DA CHÁCARA".

O DIA QUE O SACI MORREU



Maria trouxe pra mesa da cozinha todo o material que iria usar pra fazer bandeirolas. Um rolo de barbante, os papéis coloridos, a tesoura, uma panela cheia de goma de polvilho. Ah! Também pedaços de panos velhos, pra limpar os dedos. Depois de cortar as bandeirolas, Maria estendeu o barbante na mesa e mostrou aos pequenos como colar as bandeirinhas com o grude. Em pouco tempo, as crianças tinham grude pelas roupas, rostos, cabelos. Elas riam e conversavam felizes sobre a próxima festa de São João. A cada fileira de bandeirinhas que completavam, Menina e Zico corriam para o pátio para pendurá-la. Ao meio dia o trabalho já estava bem adiantado. Orgulhosa Menina olhava as bandeirolas coloridas, balançando ao vento. Zico ficou tão animado que quis logo saber a hora da festa. Com a paciência que a caracterizava, Maria explicou:

_”A festança é dispois de amenhã. Siá Doninha carece de fazê o de cumê. Siô Mozá vai cortá um pé de pau, pra modi amarrá as prenda nos gaio. As minina vai fazê os pacote das prenda. Amenhã nós apronta a fuguera, dispois ranquemo batata doce pra modi assá. Ih, meu fio, farta muita coisa ainda.”

Os dois ouviam entusiasmados. Os vizinhos viriam todos. Um colega de trabalho de dom Mozart traria uma vitrola. Da última vez que alguém levou uma vitrola na chácara, Menina aprendeu várias cantigas e divertiu-se tentando dançar ao som das músicas. Com certeza, a festa seria muito boa. O restante do dia foi dedicado aos preparativos da festa.

Cheio de ansiedade, Zico não pensava em outra coisa. Acordara duas ou três vezes na noite, e pediu pra irmã que dormia na cama ao lado, pra falar sobre a festa. Novamente, por volta das cinco e meia da manhã, Menina acordou com o chamado dele:

_Moço! Moço! Acorda! Já é depois de amanhã? Acorda, moço.

Esfregando os olhos, Menina respondeu sonolenta:

_Não! Hoje é ainda amanhã, a gente só vai ajudar o tio na hora de arrancar as batatas e por a lenha lá na frente da varanda...

_Então levanta logo, moço.

Menina olhou na direção da voz do irmão e o viu abraçado à gata que parecia morta de sono. Vendo aquela cena, percebeu que devia ser muito cedo ainda.

_Zico, ainda não é hora de estar acordado. O papai já foi trabalhar? A Maria já está na cozinha?

_Não, tá todo mundo dormindo. Mas a gente pode acordar eles, assim a gente...

_Vai primeiro perguntar se já é hora para o tio Antônio. Depois eu levanto.

Na penumbra, Menina o viu afastar-se na direção do quarto do tio. Mas agora ela também havia perdido o sono, não podia mais ficar na cama. Levantou-se e foi atrás do irmão. Zico estava ao lado da cama de Antônio, mas sem coragem de chamá-lo. Menina entrou no quarto e foi direto ao cabide de parede onde o rapaz pendurava as roupas. No bolso da calça do tio pegou o relógio de corrente e aproximou-se da cama onde ele ainda dormia:

_ Tio! Que horas são? Já é hora de acordar? Leia as horas pra gente...

O rapaz abriu os olhos e assustou-se com a presença dos sobrinhos.

_O que vocês estão fazendo aqui? Que horas são? - perguntou atordoado.

_A gente também quer saber. O senhor pode ver se já está na hora de acordar? Olha! Eu peguei suas calças com o relógio. Vê pra gente, tio. Já é hora do senhor ir trabalhar?

_Que trabalho, sua pestinha? Hoje é o meu primeiro dia de férias. Faltam ainda vinte minutos para as seis, por que vocês não estão dormindo?

_Porque o Zico queria saber se já é amanhã. Por causa da festa...

_ E só por isto vocês vêm me acordar? Por que não foram acordar o pai ou a mãe de vocês?

_Porque a mamãe bate na gente. – respondeu a garota.

_ Voltem para o quarto de vocês ou então fiquem quietos em algum lugar. Só depois do café é que vamos armar a fogueira. É muito cedo. A estas horas, o Saci ainda está pelas cozinhas das casas. Talvez detrás das portas, para assustar as pessoas - concluiu zangado, o rapaz.

A referência ao Saci fez com que os garotos saíssem rápidos para o próprio quarto. A obediência, naqueles tempos, era alcançada de maneira bem discutível. Menina descobriu cedo que os adultos conseguiam tudo através do temor. Felizmente, ela também descobrira, que todos os monstros e criaturas fantásticas, só eram vistos pelos próprios adultos. As tais criaturas nunca se deixavam ver por nenhuma criança. Até certo ponto isto a tranqüilizava. Por outro lado, se os monstros e os adultos mantinham contatos, isto era perigoso. E se eles resolvessem fazer uma guerra contra as crianças? Mas se tivesse uma guerra de monstros ela poderia contar com a ajuda do Frederico, o polonês, ela sabia tudo de guerra e ele era um adulto diferente, não fazia maldade com crianças, com certeza ajudaria no combate aos monstros. De qualquer modo, vendo ou não vendo um monstro de perto, Menina sentia-se na obrigação de falar com Zico o que ela pensava sobre o Saci. Ele acreditava na existência do Saci, no Caipora, na Mula sem cabeça, etc. Menina acreditava nos monstros dos rios, como a Boiúna, o Nêgo D’água. Mas só porque, segundo o seu raciocínio, ninguém podia ver o que existia no fundo das águas. Depois, cobras grandes existiam de verdade. Ela já havia visto muitas sucuris. Tinha até fotografias na enciclopédia. E fora na enciclopédia que Liviva lera para ela e o irmão, a história de Netuno, que vivia no mar. Então, concluía, se o Netuno existe, o Nêgo D’água também. Menina teve seus pensamentos interrompidos pela pergunta de Zico:

_ Moço! Será que o Saci já foi embora da Cozinha?

Menina achou que aquela era a oportunidade de esclarecer pra ele o que pensava do Saci.

_ Sabe, Zico. Eu acho que o Saci é uma invenção de gente grande. Eles não querem que a gente brinque na cozinha. Lembra que a vovó contou pra gente que o Saci só tem uma perna porque queimou a outra mexendo com fogo pra acender o cachimbo? Eu acho que ela inventou isso pra gente ficar com medo de mexer no fogão, pra gente não brincar com fogo. Se você tiver coragem, nós podemos ir lá agora. Aposto que só tem o gato Paizinho, sua gata e a Maria. Quer ver?

_ Não sei não, moço. E se a Maria não estiver lá? A vovó disse que ele pede fogo pra gente, que se o fogão estiver apagado ele faz a gente virar bicho e que...

_E que nada! - interrompeu-o impaciente - Então fique aqui de baixo do cobertor. Eu vou lá na cozinha perguntar pra Maria se ela viu alguma coisa.

A empregada estava preparando o café, quando Menina perguntou de surpresa:

_Maria o Saci já veio aqui na cozinha? Você já viu o Saci?

_”Dá bom dia primero, né Minina! O que qui ocê tá fazeno acordada dimenhazinha?”

_Você viu ou não? Eu perguntei primeiro.

_”Ara! Essa afrição toda é pru modi que ocê sonhô cum o coisa ruim? Eu nunca vi ele não. Cruiz credo!”

Menina viu a moça benzer-se, como fazia Siá Doninha, quando falava no capeta.

_Eu não sonhei nada. E por que você se benzeu?

_”Pru modi que o Saci é um isprito ruim.”

_Então ele não existe! Ninguém pode ver...

_”esprito ruim ixiste sim!” - insistiu a moça, abrindo a porta da cozinha, para pegar o galão de leite, deixado ali por seu “Nhô Ansim”, o leiteiro.

_Se ele é espírito, então ninguém vê. O papai disse que espírito é invisível. Eu vou lá no quarto dizer para o Zico que o Saci é bobagem do pessoal aqui de casa.

_”Ocê num vai fazê baruio pra modi não acordá os mais véio. Se alembre de chamá seu irmão pra vim tomá o café doceis.”

Menina voltou para junto do irmão e o chamou pra sair de sob as cobertas. O garoto nem se moveu do lugar. Então Menina contou que Maria havia dito que o Saci era um espírito. A informação só piorou as coisas:

_Então, se o Saci é espírito, ele é fantasma.! Fantasmas não morrem... !

_Zico! Você não entendeu nada. Se o Saci é espírito ele não existe, pois a gente não vê espírito. – Disse sem muito convencimento e olhando para os cantos do quarto. Menina não havia pensado no que o irmão acabara de dizer.
_O papai disse que espírito é imortal. O Saci é imortal e é fantasma! – repetiu o garoto.
_Olha! Vamos pedir pra Liviva ajudar a gente. Vamos prender o Saci na garrafa. Sabia que a gente pode prender ele?

_Como é que a gente vai agarrar o Saci?

_Ora! Lembra que a vovó disse que ele vive no redemoinho? Pois é, a gente pega a garrafa e vai perto do redemoinho e o vento puxa o Saci pra dentro da garrafa. Mas a garrafa deve ser tampada logo, se não o Saci escapa.

_A vovó não deixa a gente chegar perto do redemoinho. Como é que vamos fazer?

_Não sei! Vamos pedir pra o Frederico, o polonês, quando ele vier buscar coisas a gente pede pra ele.

_Moço, a vovó não vai deixar, acho que ela gosta do Saci.

_Não Zico! Ninguém gosta do Saci, ele é mau. Agora vamos lá pra cozinha. Agora já tem mais gente lá.

Enquanto via o irmão calçar os chinelos Menina pensava no que havia descoberto sobre o Saci. Ele era dois em um, por isto é que causava tanto medo. Sentindo o peso da derrota diante da nova situação, pensativa, se encaminhou pra cozinha.

Enquanto eles tomavam o desjejum, as pessoas da casa foram se levantando e se admiravam de vê-los acordados tão cedo. Maria dizia pra todos que Menina acordara cedo porque queria saber do Saci Pereré. Menina deixou-a falar. Antônio entrou na cozinha e falou com os pequenos:

_Deu cupim na cama de vocês, é? O que havia de tão urgente para me acordarem antes das seis horas?

Séria Menina olhou para o tio e respondeu:

_ Eu disse pra o senhor que o Zico queria saber se já era amanhã. O senhor ficou dormindo zangado e disse que àquela hora, o Saci tava na cozinha. Mas eu não acreditei. Eu já falei com o Zico que Saci não existe, que ele é espírito, não foi Zico?

A voz de Menina foi ouvida alta por toda cozinha. Zico, impressionado com a valentia da irmã, engoliu rápido o que tinha na boca e balançando a cabeça afirmou:

_ Foi sim! O moço falou e eu acredito no moço. – disse sem muita convicção, o garoto.

Siá Doninha sentiu sua autoridade estava ameaçada. Era necessário tomar uma atitude, os netos não mais a respeitariam. Caso eles deixassem de acreditar no Saci, seria um pulo pra deixar de acreditar nos outros seres fantásticos. De que forma ela poderia obter a obediência deles? Decidida, entrou na conversa.

_ Em outros tempos, se um menino falasse assim com os mais velhos, os pais, além da surra, deixavam de castigo por uma semana. Agora as coisas mudaram. Os pais ouvem o filho falar de forma desrespeitosa com o tio e fica por isso mesmo.

Siá Doninha falou olhando diretamente para Josefa. Mas foi dom Mozart quem respondeu à sogra:

_A minha Menina tem razão, Siá Doninha. O Saci Pereré é apenas um personagem do folclore brasileiro, é um mito. Ele não existe. As crianças não precisam ter medo disso, não é mesmo?

Menina não podia acreditar no que acabara de ouvir. Feliz, correu para o pai e o abraçou pela cintura.

_Papai! O senhor matou o saci!!! O senhor matou o Saci!!! Tá vendo Zico? Nosso pai matou o Saci!...

Zico correu pra junto da irmã e do pai e sorrindo completou a sentença do Saci:

_Moço! O papai matou o Saci só com palavras!

Menina estava exultante, não precisara usar nenhum dos planos mirabolantes para dar cabo do Saci. Agora ela e o irmão poderiam se aproximar do redemoinho, poderiam andar tranqüilos pelos arredores da chácara, não havia nenhum moleque malvado pulando numa perna só para apavorá-los. Vitoriosa, a garota olhou à sua volta. Nos rostos dos presentes havia uma expressão que ela não soube definir, deviam estar com vergonha pelas mentiras que haviam sustentado durante tanto tempo. Felizmente esta era a segunda mentira desfeita num curto espaço de tempo. Menina sentia-se feliz com o rumo que as coisas estavam tomando. Siá Doninha não olhava pra ninguém, a situação a incomodava. Mas para não perder o controle das coisas, ordenou:

_ Depois de terminado o café, venham para o pátio. Eu vou dividir as tarefas desta manhã.

Contentes com a “morte” do Saci e para provocar a avó, os pequenos começaram a pular num pé só em volta da mesa onde ela tomava café. Pulavam e cantarolavam uma cantiga inventada naquele momento:

_ “O Saci não existe, ê, ê, ê, o Saci não existe, Pereré”...

Antônio percebeu que a mãe não ficou nada satisfeita com a atitude do genro e, mais ainda, com a provocação dos netos. Por isso interrompeu a brincadeira deles, chamando-os para ajudá-lo na colheita das batatas doces. Zico e Menina acompanharam o tio. No caminho a garota falou:

_ Essa festa vai ser pra comemorar as duas mentiras que acabaram...

Zico olhou-a procurando entender. O tio, curioso, perguntou:

_ Do que você está falando, hein, Lagartinha?

Com um sorriso ela o fitou:

_ Primeiro, da máscara do diabo. Lembra que nós descobrimos que foi a mamãe que se vestiu com as roupas que depois ela escondeu no mato?

Antonio ficou vermelho e isto não escapou aos olhos da sobrinha. Tentando ainda salvar a honra dos adultos o rapaz disse:

_Aquela fantasia pode ter sido deixada lá por outra pessoa.

Menina ignorou a defesa do tio e continuou:

_E agora foi o Saci que morreu. Eu sabia que era mentira. E você Zico, nunca mais acredite em coisas que só gente grande pode ver.

E partir daquela manhã Menina não mais pensou no Saci. Seu pai o matara, como disse Zico, com poucas palavras.



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