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Contos-->ORGULHO DA ZINGA -- 20/10/2005 - 10:27 (FLAVIO DIAS SEMIM) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Balançando ao vento, aquela jovem e bela espécie de sucupira-branca sonhava enquanto contemplava o lento passar do tempo, apesar de não ter pressa nenhuma, pois poderia viver séculos plantada naquele chão mato-grossense. No conceito de tempo dos humanos conta-se as horas, os minutos, os segundos, as semanas, o meses, os anos, etc., raciocínio este que assim se pode estimar uma existência de duzentos ou mais anos de vida para uma árvore. Mas para aquele esguio arbusto, também conhecido como faveiro, somente se contava os dias e as noites, nada mais. A “conta”, no caso, não é a numérica, mas sim a percepção do espaço de tempo, isso, também pelo fato de seu crescimento ser muito lento. Os dias para sentir o sol e se aproveitar de seus benefícios; a noite, para sentir o frescor do orvalho e aproveitar para dormir. E as chuvas? Ah! As chuvas deliciosas, as vezes mansa, copiosa, pacífica e outras vezes violenta, nervosa, mas sempre a esperada chuva, que de qualquer forma propiciava no chão o verde da relva, que iria transformar ao seu redor aquele pedaço do cerrado num encantado jardim, realçando o contraste do verde com suas delicadas flores que variam do branco com nuances de rosa claro até o rosa escuro e que agora despontavam e desabrochavam.
Já esteve florido uma vez, ocasião em que exibiu suas lindas pétalas rosadas com tanto orgulho que não notou que elas eram ainda fracas e caíam mais rapidamente do que as daquele enorme e majestoso vizinho com sua copa larga que mostrava por muitos mais dias e noites do que ele, uma quantidade tão grande de flores, que lhe causava um fio de inveja. Esperava, com bastante ansiedade, a sua nova florada, que em breve ocorreria, pois as chuvas já chegavam com mais freqüência.
Na monotonia da vida em terras do planalto central brasileiro, convivendo pacificamente com outras espécies nativas, naquela calorenta tarde de primavera, já que no cerrado as estações apesar de teoricamente distintas, na realidade parecem ser um eterno verão, nossa jovem árvore não estava se sentindo muito bem, não de saúde, pois seu físico era forte, vigoroso para o tempo de vida que tinha, mas um pressentimento, uma sensação de que alguma coisa estava para acontecer. Árvore não tem sentimento, diria você, portanto não pode ter sensações! É uma verdade, mas verá que nosso herói é diferente pois alem do mais, tem visão das coisas.
A cena trágica foi rápida. Os homens chegaram, olharam para o jovem faveiro, um deles apontou e o outro imediatamente sacou de um facão e começou a golpear a base do arbusto. Golpes violentos de uma arma afiada, derrubaram-no em segundos. Indefeso, mutilado, carregado nos ombros de um daqueles homens, via seu torrão natal distanciar-se cada vez mais e mais, até desfalecer.
Aquele mesmo facão que o decepara de suas raízes agora limpava seu tronco, extirpava seus pequenos ramos e finalmente cortou a sua ponta, que jamais iriam contemplar os céus. Nesse ritmo de trabalho o seu algoz repetia sem parar: “que bela zinga, que boa zinga”.
A partir de quando, transformada em instrumento de trabalho se tornou companheira inseparável do monçoeiro, nas suas viagens fluviais, pois impulsionado por ele, fazia mover aquele canoão, que era a forma de transporte do homem. Sua ponta de base, dentro da água penetrava na areia do fundo, batia em pedras, cutucava troncos, na sina de vencer as distâncias e sem jamais vergar. Era forte, altiva e algumas vezes se aprofundava nas areias de um trecho, chegando a penetrar ali boa parte de seus quase três metros de comprimento, impulsionada até por quatro mãos humanas, mas não vergava. Não vergar nunca era seu supremo orgulho, sua forma de vingança por não ter mais podido viver naqueles campos e produzir suas magníficas flores rosadas. Não vergar era o modo de exprimir sua expressão de tristeza por ter se tornado um simples bastão com a finalidade de mover uma canoa.
O elogio era constante e por inúmeras vezes durante a sua existência ouvira o homem dizer aos companheiros, vangloriando-se que aquela zinga era a melhor de todas as que já tivera, pois não vergara jamais, apesar de ser constantemente submetida a duras provas.
Recorda aquele jovem arbusto nascido no cerrado, bem próximo daquele local denominado varadouro de Camapuã, quando integrou pela primeira vez a expedição monçoeira já transformado em zinga, embarcou com destino a Cuiabá. As corredeiras do rio Coxim, com seu solo pedregoso fazia com que seu trabalho fosse árduo, apesar de acompanhar a descida das águas. Entre tantas quedas d’água daquele trecho, após transpor a perigosa cachoeira do “4 Pés”, ouvia sempre o homem comentar, preocupado, a proximidade da chegada ao lageado do Belliago, local onde o rio Coxim deságua no rio Taquari, junto ao povoado que deu o nome àquela temida corredeira.
E não foi por menos que seu barco quase se quebrara na rebentação das águas naquelas pedras. Após a passagem pela cachoeira do Belliago, ouviu orgulhosa o homem dizer, por mais de uma vez, que se não fosse a resistência de sua zinga, teria naufragado no local. Contava sempre, entusiasmado, como a zinga se portou com galhardia quando penetrou entre duas pedras submersas e segurou a embarcação, através dos braços não menos forte do homem e como foi evitada a batida na grande pedra que surgia a frente, acima da linha d’água, pois a pancada iria ser violenta e o esforço e a valentia de ambos tornou a passagem bem sucedida.
Um dia de descanso no arraial era o suficiente e na manhã seguinte os monçoeiros, grupo de homens embarcados em suas enormes canoas desciam o belo rio Taquari, que dali em diante sem cachoeiras significativas, correndo sobre areia com a calma de um grande rio, apesar da velocidade de suas águas, tornavam, na verdade, a viagem tranqüila, onde a sua função mais se assemelhava ao trabalho de um pacato remo do que de uma ousada zinga.
A calma da descida do Taquari era algumas vezes interrompida pelo ataque dos índios Paiguás, que muito ágeis sobre suas pequenas canoas perseguiam as monções e lutavam para roubar ouro e víveres, oportunidade em que a resistente zinga se transformava numa poderosa arma do homem que com violentos golpes desferia pancadas que derrubava o valente e robusto índio, o que para ela se tornava numa enorme satisfação pois podia mostrar a outra face de sua resistência.
Chegava até a sentir saudades daquele dias nos quais os festivais de bordoadas tiravam a rotina da viagem e algumas vidas dos canoeiros, brancos e índios. Com o fim da luta a viagem seguia preguiçosa até quando na foz do Taquari surge majestoso o rio Paraguai. Adentrando a ele inicia a subida, contra o vento que produz águas revoltas e por isso é necessário navegar o mais possível junto as margens, procurando locais pouco profundos, onde a base da zinga alcance o leito do rio e possa se firmar para ser impulsionada pelo homem, repetidas vezes, inúmeras vezes, dias sem pausa, noites curtas e de pouco descanso, sempre fazendo força, sem esmorecer e, principalmente, sem vergar. A entrada nas águas do rio Cuiabá navegando contrário a sua correnteza não é menos animadora. O calor intenso e cada vez mais forte faz o rude homem suar a cântaros sob o sol inclemente, e aí, contemplando o seu semblante e percebendo o seu destino, a zinga chegou a confessar que sentia até um fio de simpatia para com o homem, com o companheiro de árduas viagens, esquecendo por alguns momentos que foi ele o seu carrasco e o seu feitor. Manejada por ele, sob suas ordens e sua vontade, obedecia sem discordar e fazia o trabalho silenciosamente. Mas teria outra forma, poderia recusar? Não, evidentemente. A única coisa, pensava em alguns momentos, seria vergar e quebrar, o que lhe causaria o prêmio da liberdade, mas isto jamais iria fazer propositadamente, pois não vergar era seu forte e supremo orgulho, a razão de sua existência.
Percorridos 3 mil quilômetros ou quinhentas léguas como era a medida naqueles tempos e após meses de viagem, cada chegada a Cuiabá se revestia em prenúncio de breve retorno, pois a carga seria deixada, passageiros desembarcados e outros embarcados, nova e valiosa carga, agora acrescida do ouro extraído das minas cuiabanas, tomariam novamente o destino de São Paulo.
E assim se passaram os anos...
Mas cada vez que a monção transpunha a pé o varadouro de Camapuã, sentia a dor de uma saudade, à vista da terra natal. Nem o prazer de navegar no rio Pardo, a quem tinha estima particular, reanimava sua esperança, pois somente a passagem por aqueles campos dava-lhe forças para vencer a tristeza.
Porém, com o correr dos tempos sua resistência debilitava pois o desgaste natural ao longo dos anos de trabalho impulsionando enormes canoas, demonstravam pelas cicatrizes deixadas por lascas tiradas de seu corpo, indícios de fragilidade. Mas o seu grande orgulho, o orgulho de jamais vergar não perdia forças, até que, enfraquecida no seu núcleo pela velhice impiedosa que atinge a todos e a tudo que vivem na Terra, na passagem pelo canal das águas do Rio Coxim, junto a sua foz, por sobre pedras que seu leito esconde, ali mesmo, local onde por inúmeras vezes suportara galhardamente a força da correnteza das águas, uma manhã, num estalo surdo e numa fração de segundo, se partira, dividindo-se em duas. O homem, apesar de passado o trecho mais crítico e colocado a sua canoa a salvo do naufrágio, raivoso pela quebra da zinga, esquecendo que ela o acompanhara durante um longo período de sua vida, furioso cuspiu ao lado e gritando: “porcaria, droga!” arremessou longe o pedaço que lhe ficara nas mãos, o pedaço maior, que flutuando sobre as águas daquele rio, lentamente foi se afastando dos monçoeiros e passou a nadar livre, descansando sobre o líquido mais precioso da vida, contemplando os céus.
Por longo tempo boiou apreciando novamente os dias e as noites se alternarem na paz do Senhor, até que em algum momento, levada pela correnteza das águas, enroscou nas raízes fortes de um frondoso ingá e ali permaneceu presa, sem saber quanto tempo foi passado na medida dos humanos. Foi aquele o lugar que, protegida pelos ramos do ingazeiro, sobre as águas do Taquari e sentindo os ventos inconfundíveis do rio Paraguai, tornou-se aquele o lugar da sua sepultura, até quando seus restos, podres, fracionados e pequenos, virando pó, chegaram as águas do oceano e nunca mais se ouviu falar dela.
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