Raimundo Nonato nascido lá no norte do Brasil, sempre foi um rapaz educado em bons colégios, tendo por isso uma cultura sólida. De família razoavelmente endinheirada e extremamente religiosa, foi para São Paulo cursar Direito, em uma das mais famosas faculdades da Capital, sem ter, na realidade, muita vocação para o ramo das Leis, mas que fazia apenas para atender o desejo de seu pai. Sua vocação era, sem qualquer sombra de dúvida, a religião e tinha a Bíblia sempre em sua companhia, junto aos livros escolares.
Ainda na infância, preparando-se para a sua primeira comunhão, o trecho bíblico que ensina o reinado de Cristo com Seus santos por mil anos, após o que a Terra estará completamente desolada, sem habitantes humanos, ( Apoc. 20:1-10) impressionou-o profundamente e da qual jamais conseguiu se afastar:
Na mocidade, ouvindo de um membro de uma seita religiosa a frase “Do mil passarás, ao dois mil não chegarás”, abandonou a faculdade e passou a seguir os ensinamentos daquela teoria, resultando dai durante a vida toda tornar-se seu defensor e na sua obsessão pregar a todos tal doutrina, sempre e em qualquer lugar que estivesse, transformando-se em um verdadeiro profeta do apocalipse.
Muitos amigos já o evitavam e diziam quando ele se aproximava: “Lá vem o Raimundo Fim-Do-Mundo! “
A cada ano ele acreditava cada vez mais que a passagem de 1999 para o ano 2.000 seria o momento fatal, o fim dos tempos, o fim do mundo, e para isso se preparava psicológica e espiritualmente.
Com o correr dos tempos e com a aproximação da data fatal, passou a pregar nas praças, nas ruas, nos ônibus, no campo e na cidade, travando uma luta desesperada contra as horas e os dias, ao tentar convencer as pessoas à procurarem rapidamente a salvação, pois a data fatídica estava prestes a acontecer.
Sua saúde se debilitava, sua fraqueza física a cada dia mais se mostrava, seus ossos afloravam o corpo todo, marcados sob sua pele, apenas a voz se mantinha forte para ser ouvida pelas repetitivas palavras: “ao dois mil não chegarás”. Sua aparência demonstrava sinais de loucura e moleques maldosos seguiam-no pelas ruas, cantando num ritmo debochado, zombeteiro: Raimuuundo Fim-Do-Muuundo, Raimuuundo Fim-Do-Muuundo!.
Dezembro de 1999 estava por terminar e o Raimundo Fim-Do-Mundo agora ostentava sinais de fragilidade mental, levado pelo fanatismo desenfreado de sua crença. A cada um de quem conseguia um pouco de atenção apregoava sua idéia fixa, repetindo após breve oração: “Busca a salvação pois ao dois mil não chegarás”, podendo o interlocutor ouvir a distância o bater cada vez mais forte de seu coração.
Dias 29, 30 e finalmente dia 31 de dezembro de 1999, véspera do dia fatal, Raimundo Fim-Do-Mundo andava pelas ruas do bairro onde morava e gritava a todos, sem que ninguém mais lhe desse atenção: “salvem-se todos pois ao dois mil não chegarão” e chorava. A noite se aproximava e o povo já se preparava para receber o novo milênio, apenas Raimundo procurava se esconder, em qualquer canto, sem encontrar um canto seguro. Família não tinha naquela cidade e portanto não tinha um peito carinhoso para lhe aconchegar. Seus olhos, esbugalhados, fixavam o grande relógio da praça e sua pulsação disparava, na medida em que os ponteiros avançavam. Não demonstrava a serenidade que tanto apregoava.
Cinco, quatro, três, dois, apenas um minuto para a meia noite, para a zero hora do ano novo e o povo já delirava de alegria, quando um potente rojão foi disparado por algum afoito feliz. O Fogo riscou o céu, subiu rápido deixando fagulhas no seu rastro e explodiu num estrondo ensurdecedor. O barulho como de um trovão fez Raimundo tremer quando estava fitando o céu e os fogos disparados a seguir já não mais foram ouvidos por ele, pois junto com o violento estampido e a explosão de fagulhas seu coração também explodiu, num colapso fulminante.
Tombou para a frente, ajoelhado, com as mãos tapando seu olhos arregalados, sem um gemido, sem uma lamentação, sem um Adeus, engasgado pelo pavor. O homem que o tomou nos braços, velho conhecido do Raimundo Fim-Do-Mundo, percebendo que o fim havia chegado para aquele ser, murmurou enquanto com o polegar direito fechava os olhos do falecido:
- Ao dois mil não chegastes, Raimundo, ... por um minuto apenas.
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