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Contos-->O caso das "canetas" -- 21/12/2005 - 12:50 (Osmar Malheiros) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Para começar a falar das canetas, preciso retroceder anos atrás através de
memórias que não representarão fielmente a realidade, mas manterei o cerne da história.
Isso aconteceu quando eu tinha 11 anos.


Nessa idade havia poucas coisas que eu adorava e uma delas era a televisão. Ligava-a de manhã e me perdia nela até a hora da escola. Naquela época estudava a tarde, das 13:00 às 17:00hs e bastava também
retornar para ligar a TV e assistir o que estava passando.
Creio que Deus tenha sido generoso com minha família a não dar condições de, naquela época, ter uma TV a cabo, se não a desgraça estaria formada. Seria uma espécie de Hommer Simpson adolescente caraterizado pela dependência excessiva da TV. E daí pode surgir a pergunta do que tanto eu via na TV? O que é que me prendia nela que não deixava nem que eu fosse ao banheiro, bloqueando todas as minhas ações?
A resposta é ridícula...qualquer coisa me prendia. O comercial novo, o Cassino do Chacrinha, a novela das 6h, das 7h, o jornal das 7h, a novela das 8h, o filme depois da novela, os programas infantis de manhã.
Era uma demência incontida, literalmente uma demência. Faltou falar das minhas paixões: Spectroman, Ultraman, Ultraseven, Robô Gigante e tudo que era robô que lutava. Me lembro até de uma tartaruga robô, que para voar, recolhia os membros e cabeça e desses membros recolhidos saiam fogo onde ela ia girando e voando, uma obra prima do trash. A coisa começou a esquentar quando meu pai um dia chegando do trabalho me viu sentado na poltrona dele ( sim, lá em casa os lugares eram mais ou menos demarcados) e me perguntou sobre a escola, a lição de casa e afins.
- Tá tudo bem pai, não tenho lição pra fazer.
- Mas faz uns dias que tenho notado você aí sentado em frente a TV sem nada pra fazer.
- Ué pai, mas você quer que eu faça o que?
- ...
E aquele dia chegou ao fim como era previsto.
Após alguns dias repetindo-se essa situação onde meu pai chegava e fazia a mesma pergunta, ouvindo a mesma resposta e terminando com uma fatídica reticência, houve uma mudança no rumo da prosa, onde a reticência foi trocada por algo mais:
- Tudo bem Osmar, amanhã darei um jeito nisso!
- Como assim pai? - perguntei sem tirar o olho do programa que estava vendo.
- Deixa comigo.
E mais um dia chegou ao fim também, como previsto.
Fim da aula, cheguei em casa e como sempre, liguei a tv e me embebi de assuntos que não me diziam respeito até que ouvi um bater na porta como se alguém tropeçasse e se apoiasse na porta para não cair. Estranho. Não esperava ninguém, mas era meu pai que com dificuldades abria a porta tendo as mãos uma caixa enorme de canetas com as inscrições: Canetas Kilométrica.
Foi inevitável não olhar e perguntar:
- Nossa pai, o que é isso? - Dividindo o olhar entre a tv e ele.
- Uma caixa, não tá vendo? - Meio esbaforido pelo peso.
- Tô vendo, mas caixa de quê?
- Caramba Osmar! De caneta!
- Ah...!?! Mas o que o senhor vai fazer com tanta caneta?
- Eu não farei nada, mas você vai!
- Como assim ??
Sacou do bolso uma folha de papel dobrado dizendo:
- Essa é uma lista de todas as feiras que acontecem aqui pelo bairro, descobri que todo dia tem feira e você vai vender essas canetas. Já que você tem tanto tempo para ficar vendo tv, agora vai ter tempo para vender também. Sabe aquela sensação súbita de desmaio? Um salgar de boca e escurecer de vista? Foi mais ou menos assim que me senti quando peguei a lista nas mãos. Mãos trêmulas e frio na barriga.
- Mas pai, eu não sei vender nada?
- Ué, aprende! Pra ficar vendo tv o dia inteiro ninguém te ensinou! Eu tenho certeza que não, então agora você aprender a vender, a ser útil pra você mesmo.
- Mas pai...
- Osmar, você começa amanhã. - tirou notas trocadas do bolso - e isso aqui é para o troco, caso você precise.
Me entregou as notas e voltou para a rua, para fazer não sei o que, mas pensando bem agora, talvez para rir, pois imagino que minha cara com aquela sensação de desmaio tenha sido demasiadamente cômica pra ele.
Aquele dia não chegou ao fim...na verdade tudo a minha volta tinha parado.
Remexia meus sentimentos e toda vez caía num único ponto: O que os meus colegas vão pensar de mim? Não posso ser visto vendendo caneta na feira! Meu Deus!! A que nível cheguei!
Sentia vergonha por tal situação. Algo dentro de mim queria sair correndo e era algo quente, vivo como o pudor de uma virgem, desesperado como o sexo de adolescentes e preso a esses pensamentos tive uma noite dos diabos rolando na cama. Acordei pela madrugada e olhando para o papel, amaceio-o e joguei no lixo do banheiro, justo esse para indicar minha indignação e desprezo pela situação.
Ainda pela manhã, antes de meu pai ir ao trabalho, tentei argumentar sobre a necessidade de ter que passar por uma situação dessas, repassei todo o meu ponto de vista de que isso ia interferir meus estudos e a resposta foi clara:

- Para mim não há necessidade nenhuma, mas você me provou que precisa. Então você vai e eu estou mandando você ir, não estou pedindo! Já viu na lista onde é a feira hoje?
- Não.
- Deixa eu ver onde é.
- Eu joguei o papel fora...
- Jogou fora? Onde?? - falou com um ar de indignação.
- No lixo do banheiro.
- Tá bom, estou esperando.

Vocês já viram uma vaca indo para o matadouro? Essa era a sensação que tinha e encontrando o papel tive vontade de engoli-lo para não ter que entrega-lo a meu pai, mas dada a situação e local que ele
se encontrava, ponderei essa ação, afinal era o lixo do banheiro.
Entreguei o papel amassado e me veio aquela sensação de vista escura e boca seca, a vontade de querer correr, o poder de entrar num programa de televisão e lá me esconder, pulando de canal em canal para
não ser encontrado nunca mais, mas não podia, só restava ouvir o veredicto de minha sentença.
- Legal! Hoje é quinta e tem feira lá na rua X. Quando eu chegar em casa, conversamos novamente. Tchau.
Saiu apressado como de costume, não por que estava atrasado, mas por que andava apressado sempre, nunca chegou atrasado ao trabalho, nunca faltou sem uma boa justificativa, nunca fez as barbaridades que hoje cometo e digo barbaridades porque se ele soubesse metade das coisas que faço me chamaria de bárbaro, de demônio que está fazendo mal a sociedade.
Minha mãe é uma personagem secundária nessa história, ela acompanhou de perto meus momentos, mas resignada, não me absolvia de nada quanto a eu ter que enfrentar a feira.
Não vou retratar o caminho até a rua X, uma por que não me lembro e outra por que não é relevante. A única coisa realmente relevante era que no caminho só me passavam coisas como: "E se fulano me ver?", "O que a fulana pensará de mim?", "Sicrano vai pensar que estou passando fome", "Estou ferrado, ferrado!", "Meu Deus, me mate por favor!!"
Mas Deus não me matou e na feira, com uma caixa de canetas na mão, andei mudo, de ponta a ponta dela, como se fosse um robô, com os olhos atentos as pessoas conhecidas e sempre que avistava alguém, mesmo que só um conhecido; tratava logo de me esconder para não ser visto por ninguém e assim foi por horas, horas intermináveis e no fim quando já é dado aquele horário que ninguém anuncia, mas sabe-se que a feira vai acabar, uma senhora me abordou perguntado se eu estava vendendo as canetas:
- Estou.
- Quanto é?
Eu se quer tinha pensado no preço, não sabia por quanto ia vender e naquele momento chutei:
- Cinco reais ( dadas as devidas correções de moeda e atualizadas para hoje)
- Cinco reais ? Tá louco? Por uma caneta???
- Não, por 3! - Tentando livrar-me da bobagem.
- Mas eu só quero uma. Me vende uma por um real?
Entreguei a caneta tremendo e a senhora me deu o dinheiro que peguei com a mão suada, quase pingando e sumi da frente dela.
Voltei pra casa com as pernas bambas e um frio na barriga que não tinha tamanho. Cheguei a tempo de tomar banho e ir para a escola e quando voltei, se quer olhei a televisão, fui pra rua até a noite para não ver meu pai chegar e conversar sobre o embaraço que foi aquele meu primeiro dia.

Sexta-feira, Rua Y.

Foi uma repetição do dia anterior com a única diferença de que ao voltar pra casa, depois da minha saída estratégica, meu pai me esperava curioso para saber do meu desempenho nas vendas:

- E aí? Como foi lá? Vendeu bastante?
- Ah! Não muito pai...
- Está com algum problema? Não está conseguindo vender?
- Estou, estou; mas parece que o povo não quer canetas...
- Mas me conta como você está fazendo para vender?
- Ah pai! Já chega lá na feira, não vou fazer isso não.
- Tá bom. E quanto você vendeu hoje?
- Não muito...
- Tá, mas quanto você vendeu?
- Pai, sinceramente não sei, ainda não fiz as contas.
- Sei...
- ... - internamente rezava para aquele interrogatório acabar e dessa vez Deus atendeu.
- Tá bom. Qualquer problema que você tiver me fala.
Naquela noite eu peguei a lista com medo de saber onde seria a próxima empreitada. Sábado. A feira mais próxima de casa e dessa vez com muito mais gente que me conhecia. Pensei em não ir, mas meu pai estaria em casa, não tinha jeito. E no Sábado de manhã peguei a bendita ( mas que na época era maldita ) caixa de canetas e fui. Chegando no começo da feira, encaixei a caixa de canetas embaixo do braço e dei passos ligeiros como se estivesse apressado com alguma coisa e fui observando as caras conhecidas...O mundo todo me conhecia ali, meus amigos, amigas, pais deles, colegas dos colegas e eu já estava parecendo vereador, dando tchau para todos os lados cumprimentando quem me cumprimentava:
- Meu...Hoje não vai dar. Preciso dar um jeito antes que alguém descubra.
Me posicionei no meio da feira, entre uma barraca e outra com uma árvore no meio. Pronto, achei o lugar ideal para ficar plantado, com uma visualização péssima tanto minha quanto dos outros. Era o lugar ideal para literalmente me esconder. Apoiado na árvore com a caixa de canetas atrás do corpo, parecia que eu estava ali apenas vendo o movimento, observando o burbúrio típico sem nada mais pra fazer, literalmente vendo uma TV de pessoas que iam e vinham e muitos, muitos rostos conhecidos para dar tchauzinho.
Passada mais ou menos uma hora, já estava acomodado na situação e até um pouco mais relaxado, afinal ali não me expunha e não passaria o carão de ser descoberto como Osmar, o vendedor de canetas Kilométrica! A caneta simpática, por um preço milimétrico!
Nesse instante, me ajeitando mais na árvore e olhando as pessoas sempre procurando um rosto conhecido para poder me esconder mais, encontrei um rosto muito conhecido, aliás, conhecido demais para ser verdade. Meu pai estava ali, parado na minha frente e me observando:
- Ah! É assim que você está vendendo as canetas então?? - Falou com uma seriedade tranqüila.
- ... - eu queria chorar, sair correndo, não queria estar ali, pensava comigo que não merecia estar ali. Por que eu tinha que passar por um vexame desses de ter todos os meus amigos tirando sarro de mim? Me vendo com um olhar de cima que eu não suportaria?
Por que eu passava por um castigo tão severo, quando seria apenas necessário uma boa conversa, ou uma surra. Já nem ligava mais se tinha que apanhar, o importante era não estar ali.
- Osmar, eu sei o que está passando na sua cabeça. Você está com vergonha por que tem um monte de gente que te conhece aqui, não é?
- ... - estava com a cabeça baixa, garganta travada segurando o choro. Apenas fiz um sim com a cabeça.
- Olha pra mim enquanto eu estou falando com você Osmar.
- ... - levantei o rosto e os olhos como represa seguravam águas de intensidade, lágrimas que não rolariam, pois eu cortaria seu caminho à menor tentativa de descida. Latejava um orgulho frio em mim.
- Me dá a caixa Osmar.
- ...
- Me dá a caixa!
- ... - Estendi a mão num gesto mecânico e mudo.

Meu pai pegou a caixa com jeito, arrumou as canetas e ofereceu para um casal que morava na minha rua, que o conhecia. Saiu andando pela feira e oferecendo as canetas para os feirantes, para meus amigos e amigas, colegas de meus amigos, pessoas que também o conheciam, desconhecidos e até dentro de um bar ele entrou até perder-se da minha vista. Me encontrou depois de ter dado a volta na feira toda ali na mesma árvore. Veio com a caixa vazia e dentro dela o dinheiro da venda das canetas.

- Toma Osmar, esse dinheiro é seu...agora você já pode ir pra casa. - Me olhou com a cabeça erguida e eu o vi com um brio que nunca tinha percebido antes. Me olhou nos olhos com o sobrenome Malheiros, com coragem de homem e pai e foi pra casa.
Daquele dia em diante, enquanto havia canetas para vender, tornei-me o melhor vendedor de canetas que olhava as pessoas nos olhos, de cabeça erguida e feliz, muito feliz.
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