Usina de Letras
Usina de Letras
160 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62220 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10363)

Erótico (13569)

Frases (50616)

Humor (20031)

Infantil (5431)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140801)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6189)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Noite Tranquíla -- 26/12/2005 - 00:32 (António Torre da Guia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


NOITE TRANQUÍLA

Estou defronte à lareira onde meus avós maternos aqueceram os seus treze filhos, uma velha e calcinada lage de granito à altura de meus joelhos, com cerca de quatro metros quadrados pela espessura de dois palmos.

Aspergindo um agradável aroma de eucalipto, o fogo trabalha sôfrego a madeira. Estou a ver o corpo das chamas serenamente dançando, como se fossem ágeis bailarinas, vestidas de arco-íris, exibindo em palco harmoniosos esvoaços borboleteantes numa opereta que só eu imagino e realizo.

As chamas, zunem, crepitam, bufam, estalam, dando a ideia que estão cantando e sapateando. Quando os estalidos soam mais agudos, meu cão, estirado consoladoramente a meus pés, soergue a cabeça e levanta as orelhas, em trejeito admirado, mas, olhando para mim, ao confirmar em meu sossego que nada se passa, mete de novo a cabeça entre as patas, fecha os olhos e finge que está a dormir.

Meu avô António, minha avó Maria, seus filhos, nove rapazes e quatro raparigas, que por muito pouco tempo estiveram todos juntos, estão sentados em torno da robusta mesa de castanho: António, Marcelino, Manuel, Joaquim, Sofia, José, Albino, Balbina, Narcizo, Laurinda, minha madrinha de baptismo, Guilherme, Maria, minha mãe, e Valentim. À excepção de Manuel e Albino, que emigraram para o Brasil e lá constituiram a sua família e têm túmulo, todos os demais, na realidade, repousam na sua terra natal, em Mindelo, uma neirinha e muito pacata freguesia do concelho de Vila do Conde. Também, tios e tias pelos laços de casamento, vão desfilando em minha íntima retina: Arnaldo, César, Glória, Arminda, Erlanger, Madelleine e Maria, que, contra todas as opiniões e oposições, foi esposa legítima, respectivamente, de Valentim e de António.

Acabei de cear uma saborosa posta de bacalhau cozido, com batatas e grelos, tudo temperado com um delicioso molho confeccionado à base de azeite, cebola, tomate, piri-piri e alho. Vou no terceira porção de um assaz trepador carrascão verde-tinto, daquele que pinta o copo, os lábios, a língua e faz crescer a alma. Comi de sobremesa uma lauta rabanada regada com açucar em ponto e mel natural. Sinto-me como um paxá posto em trono. Só me faltam as odaliscas. Noutros belos tempos, logo a seguir à ceia, tinha o privilégio de adormecer nos braços de minha mulher após uma deslumbrante subida ao sublime olimpo dos saciados espíritos.

De todos os entes que me são queridos, consoante o movimento das chamas e seu fumo sombreiam as negras paredes da lareira, o meu olhar vai montando uma a uma as suas figuras, inclusive a imagem de amigos caros que nunca mais poderei rever a não ser deste modo. Opero assim uma visual ressurreição que coloco a desfilar no ecrã de meu cérebro. E claro, a comoção, embora intensamente benigna, obriga a que se me desprendam, rosto abaixo, algumas lágrimas que não posso conter em meus aguados olhos.

Desta feita, sem que alguém me perturbasse ou interrompesse o lazer de estar tranquilamente como fiquei, adormeci, cerca da meia-noite e pouco, na mesma cadeira de encosto onde minha avó se balanceava, balancearam meus tios e tias, muitos dos meus primos e eu, quando era um pequenote inquieto e difícil de aturar.

Às 6 horas da manhã, logo que o calor se diluiu, vencido pelo frio matinal, acordei de sopetão. Fui então para o quarto que me estava destinado e deitei-me. Meu cão seguiu-me e estirou-se sobre o tapete a cheirar curiosamente desconfiado os meus sapatos...

Ao retomar os rabiscos que anotei para produzir este texto, num memórico ápice, constato, ao reflectir sobre mais esta passagem por um benquisto Natal, que nunca dantes tinha fruído tão reconfortante e agradável momento, que aliás previ, preveni e executei com descontraído raciocínio. Sei a partir de agora que posso dominar a tristeza e a alegria como quiser em face das agruras ou das benesses da vida que me resta cumprir, até que enfim atinja deveras a definitiva noite tranquíla, como todos aqueles que em saudade envolvente me vão iluminar e aquecer os sentidos ao longo dos próximos tempos, já que, aos que vão envelhecendo, muito raros são os vivos que voluntariosa e sinceramente lhes acariciam a existência. As imitações sentem-se e doem muito mais do que o completo abandono.

António Torre da Guia

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui