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Contos-->O VELHO QUE VENDIA PENSOS -- 07/01/2006 - 23:41 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
No bairro quase todos o conheciam. Encostado pelas paredes, com uma velha bengala numa mão e uma caixa de pensos na outra. Procurando o sol ou a sombra, ou recolhendo-se debaixo de toldos quando chovia. A pouco e pouco, o seu corpo foi-se curvando o que o obrigava a olhar, mesmo sem querer, para a própria sombra que se desenhava no chão.
Vender pensos é um modo envergonhado de pedir esmola. Cruzavam-se com o senhor Ventura, romenos e romenas, algumas ainda crianças, que vendiam também pensos e a revista Cais. Os ciganos, etnia mais «privilegiada», vendiam ali perto DVD piratas, óculos e roupas de contrafacção.
Alheios a tudo isto, por vezes desviando-se apressados, eram muitos os que se dirigiam para os meios de transporte que os levariam aos seus destinos. Perto, uma igreja e vários pedintes e estropiados, com mãos estendidas para os fiéis que subiam as escadas mas que quase não os olhavam. Numa esquina, grupos de reformados que procuravam - conforme as contingências do tempo - o afago do sol ou a amenidade da sombra, para irem desfiar o rosário das suas recordações, das suas vidas, das suas dificuldades e das suas doenças. Em frente, numa esplanada, os mais abastados tomavam o pequeno-almoço e liam jornais.
Era neste ambiente que o senhor Ventura se movia há vários anos. Logo que obtinha alguns cêntimos, dirigia-se lenta e arrastadamente para uma das muitas tasquinhas, leitarias ou cafés, onde bebia invariavelmente um copinho de vinho tinto. Bebia-o dum trago, trocando por vezes dois dedos de conversa, e logo saía para reencontrar o seu «local de trabalho»... Gostava de dirigir galanteios às mulheres que passavam, galanteios gentis e com graça. Também se metia com a criançada que se dirigia para as escolas e liceus das redondezas. Todos lhe achavam piada e lhe demonstravam carinho, pois ele nunca ultrapassava os limites do razoável.

Cada vez era preciso menos vinho para o embriagar. Contudo, num derradeiro assomo de dignidade, ele sabia recolher-se a tempo na sua modesta casa. Poucos sabiam onde ele morava e como vivia. Habitava num aglomerado de casas térreas e barracas degradadas numa das saídas de Lisboa. Tinha como vizinhos gente modesta de todas as raças e credos. Viam-no sair cedo e rumar para o interior da cidade. Mal o enxergavam na hora do regresso, quando ele se deixava engolir sorrateiramente pela porta do seu refúgio.
Francisco Ventura não tinha vivido sempre assim. Em novo tivera vários empregos, embora nada certo. Mas sempre trabalhara. Como moço de fretes, como estivador e em algumas fábricas e oficinas. Nunca lhe puxou para estudar nem para aprender um ofício. Tinha sido criado ao «Deus dará», praticamente sem pais nem família, mas era honesto, trabalhador e, segundo diziam as moçoilas, um belo homem.
Engraçou com uma rapariga que conheceu e juntaram os trapinhos. Alzira engravidou e ficaram aguardando o rebento com ansiedade. O parto foi prematuro e correu mal. O bebé salvou-se mas a mãe não sobreviveu. Francisco viu-se perdido, sem a companheira e com uma criança que não poderia criar.
O pequeno foi registado com o nome dos pais (Tiago Soares Ventura) e entregue a uma Instituição para futura adopção.
Desgostoso, Francisco começou a beber. Para sobreviver continuava a trabalhar aqui e ali.
E assim foram desfilando os anos. Nunca se interessou verdadeiramente pela vida. Soube que o filho tinha sido adoptado por um casal de portugueses da África do Sul. Tinham salvaguardado a hipótese de um dia contactarem o verdadeiro pai. Esta esperança acompanhou-o sempre e, cada vez que mudava de casa, avisava a Instituição. Talvez o sonho um dia se realizasse. Ao olhar as crianças tentava imaginar como seria o seu filho e em cada mulher revia Alzira. Daí a ternura com que olhava as mulheres e as crianças com quem se cruzava.

Um automóvel parou ao cimo da rua. Não avançou mais porque a passagem era estreita. Um homem bastante novo saiu, bateu a porta e desceu a rua seguido pelo olhar de vários moradores. Algumas crianças, na maioria negras, seguiram-no saltitando e correndo como que a saudar a presença do estranho. Parou junto dum jovem casal e perguntou-lhes se sabiam onde morava o senhor Francisco Ventura. Logo lhe indicaram uma casa ao fundo da rua – «a única com uma porta vermelha», disseram. O homem estugou o passo e em breve bateu à porta. Como ninguém apareceu, voltou a bater. Ouviu um ruído e a porta abriu-se.
- Sou o Tiago!
Francisco sentiu um misto de sensações inexplicáveis. Tinha bebido demais e por isso voltara tão cedo para casa. Abriu os braços e, sem forças, deixou-os cair de novo... Tiago resolveu a situação pedindo para entrar. O pai afastou-se e ele subiu o pequeno degrau da soleira. Abraçaram-se sem pronunciar quaisquer palavras. Uma lágrima furtiva deslizou pela face tisnada do Francisco, enquanto os olhos de Tiago também se marejavam de lágrimas. Olharam-se bem nos olhos e Francisco, envergonhado, perguntou:
- Não esperavas ver-me assim... Um bêbado que sobrevive pobremente à espera da morte...
- Pai, eu estou bem na vida. Casei com uma holandesa, temos um filho e vivo numa vivenda grande em Joanesburgo. Pensava levá-lo, se quisesse... Mas assim...
- Assim como Tiago? Referes-te ao vinho? Eu ainda tenho força de vontade! Julgas que me passou despercebido o que disseste? Acabei de saber que sou avô. Moveria montanhas para conhecer o meu neto.
- Olhe pai, vim à Europa para visitar vários clientes, pois dirijo uma grande empresa de derivados de fruta. Vou dar uma volta de negócios pelo Norte, que durará uma ou duas semanas. Depois volto. Pense bem. Gostaria de o levar!
Quer vir jantar comigo?
- Não meu filho, já perdi o hábito de comer à noite. Talvez reaprenda, mas com mais tempo.
Despediram-se e prometeram um reencontro para duas semanas mais tarde. Tiago dirigiu-se apressado para o carro que alugara. O pai, ainda perplexo, deixou-se cair numa cadeira e nem sabia que fazer... A cabeça rodava-lhe em ritmo vertiginoso.

Francisco acordou no dia seguinte e julgou ter sonhado. Contrariamente ao costume ficou largos minutos na cama, relembrando o que se passara na véspera. Imaginava-se já noutro país, com gente diferente e vivendo uma vida nova. Levantou-se por fim, não tão rápido como queria mas por incapacidade física. A decisão estava tomada. Preparou-se para sair e procurou uma jarra que estava em cima dum móvel. Alcançou-a com custo. Quase que ia caindo. Meteu a mão dentro e puxou um fio de ouro que pertencera à sua Alzira. Ia vendê-lo mas por uma boa causa. Queria estar decentemente vestido quando o filho voltasse. Se bem pensou, melhor o fez. Pela tardinha, houve quem o visse descer a rua, de regresso a casa, com um sorriso nos lábios e um grande saco de plástico na mão. Parecia andar até com mais facilidade.
Entrou em casa e despejou o saco em cima da cama. Um fato, uma camisa, uns sapatos e – pasme-se! – até uma gravata. Vestiu-se e, tentando endireitar o corpo, olhou deslumbrado para um velho espelho partido encostada à parede. Agora só havia que esperar pelo filho, fazendo o maior teste da sua vida. Num prato da balança o maldito e antigo vício do álcool, no outro a miragem do neto que queria conhecer a todo o custo.

Foi notada a sua ausência nos locais onde parava. Logo alguém disse que ultimamente ele andava bastante doente e teria morrido. O enterro fora feito a expensas da Misericórdia visto que ele não tinha família, acrescentou outro. E a notícia correu de boca em boca, todos lastimando o desaparecimento do senhor Ventura que «até era boa pessoa»...
Mal sabiam eles que, quase à mesma hora em que propalavam a falsa notícia da sua morte, Francisco Ventura iniciava uma nova vida no Hemisfério oposto.
O filho voltara como prometido e, depois de tratar do passaporte, do visto e da passagem, levou-o para a África do Sul, onde foi recebido de braços abertos pelos pais adoptivos de Tiago e pela nora. O neto era lindo. Embora tardiamente, Francisco encontrava uma família, coisa que a bem dizer nunca tinha tido.
O cúmulo da felicidade viria tempos mais tarde. Tiago e a mulher fizeram questão dele ser o primeiro a saber. Elisabeth estava de novo grávida. Vinha aí verdadeiramente gente nova e um tempo novo! - O senhor Ventura, o «velho que vendia pensos», estava definitivamente enterrado... Um horizonte de esperança desenhava-se agora à sua frente!

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