Pensei em começar a crónica definindo a saudade numa imagem: a de um machado que executa, com feitio sádico, um castigado coração. Mas um golpe brusco, incisivo e seco seria uma espécie de alivio para o sujeito que sofre dessa agonia. A saudade seria, então, a tortura contínua das penetrações de milhares de agulhas numa carne cansada, preferivelmente, debaixo da unha. A dor é ininterrupta.
Palavra expressiva esta tal saudade - sua beleza situa-se na dor de quem sente a alma entrevada. Existente apenas na língua portuguesa usada no Brasil, a palavra expressa uma lembrança, suave e triste ao mesmo tempo, de um bem do qual se está privado. A saudade é um triste pesar, uma mágoa, uma nostalgia que se instala frente à ausência da pessoa querida.
Chico Buarque, na sua genialidade, definiu a dor da lembrança usando a imagem de um lugar comum: "a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu".
Porém, a saudade dolorida é a da pessoa que se ama. Sentir falta de um tempo distante, de lugares ou objetos, de situações, de animais, de conversas em grupo, da infància, da juventude, de festas e amigos pode gerar um sorriso nostálgico de quem já aproveitou e muito nessa vida. Diferentemente da lágrima que insiste em cair quando há uma distància entre duas pessoas que se amam: neste caso o sofrimento anuncia-se evidente.
No sujeito que sente saudades se instaura a velha cara de bobo-alegre que não significa nada além de uma comoção com qualquer eventualidade: até mesmo a imagem da avó tirando um naco do dedão, no momento de cortar as unhas do pé chega a ser tocante. A sensibilidade fica até mesmo redundante: ela se torna sensível - um beijo de novela lacrimeja os olhos e um abraço num comercial de margarina faz palpitar o coração do saudosista. Imagina o que um casal de pombos trepando na Discovery Channel seria capaz de causar aos nobres sentimentos do indivíduo: algum transtorno semelhante ao causado pela avó cortando as unhas.
O sofrimento do saudoso se explica pela falta da pele, do cheiro, da voz, do gosto. Da presença do outro. Falta também da ausência consentida: pois uma coisa seria ficar sem se encontrar por uns dias sabendo que, brevemente, esses momentos de carência cessarão. Outra, totalmente diferente, seria a certeza de que esta execrável distància nunca encurtará. Ou uma aproximação acontecerá num período futuro e distante.
A saudade dói por ser a falta de estar a par do que acontece com o outro. A falta de saber se o outro se encontra gripado, rindo, se comeu pizza ou miúdos, se foi ao cinema ou ao teatro. Permito-me fazer uma correção: a dor da saudade não é a "falta", e sim, a "necessidade" de saber se o outro continua tomando vinho antes de deitar ou mesmo se usa aquela camisa amarela horrível e a meia com um ursinho detestável.
Saudade é não saber. Desconhecer qualquer atividade prazerosa que ocupe a cabeça naqueles dias compridos. Qualquer atividade que lhe transforme o pensamento, além daquela de observar por trinta minutos o cachorro correndo atrás do próprio rabo, porque, sabe-se lá o motivo, isso lembra o sorriso da outra pessoa. O mesmo sorriso lembrado há uns minutos anteriores no instante em que a vovó cortava as unhas. A saudade é desconhecer qualquer maneira de vencer uma dor causada por um silencio que nada preenche, é um castigo dado, justamente, Ã quele que não deu a devida importància aos preciosos períodos em que os corpos se encontravam unidos, fazendo com que o sofredor se lembre de pequenos fatos que interiorizavam o cotidiano. Saudade não é nada além do ansioso desejo de querer sufocá-la até o precioso momento de sua morte, onde se encontra novamente o rumo de uma transtornada, mas valiosa, felicidade. |