Usina de Letras
Usina de Letras
151 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62214 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13569)

Frases (50608)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140799)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6186)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->"Seu"Tibório do Português -- 10/01/2006 - 21:33 (Magno Matheus da Rocha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Seu Tibório do Português
Conto de Magno Matheus da Rocha

Todo mundo tem uma maniazinha, você reparou? Eu mesmo tenho a minha, depois eu conto. Pois bem: "seu" Tibório, como era conhecido em sua pequena cidade, que foi crescendo junto com ele, tinha lá sua mania que lhe acabou rendendo um apelido: "Tibório do Português". Por quê? Conto já.
Imagine uma vila do interior, no passado, onde todo mundo se conhecia e se tratavam até com certa intimidade. Lugar comum, com pequenas casas, algumas de tábuas mal pregadas, outras até de alvenaria, mas sempre modestas, como modestos eram seus habitantes.
Rua calçada nem pensar, mesmo porque por lá ainda não transitava automóvel, apenas carroças puxadas a pangaré, ou cavaleiros montados em seus magrelos rocins. Lá uma vez ou outra aparecia algum coronelão bem montado, de botas e esporas, barba feita, bigodão à portuguesa e chapéu de couro, sim senhor, exibindo um lindo alazão de raça, bem arreado e enfeitado para que todos os conterrâneos o visse e sobretudo o invejasse. Chegava em frente ao pequeno armazém (tudo era pequeno, naquela vila, depois cidade) cujo nome (já ia me esquecendo!) era apenas São João, depois Vila de São João, depois Cidade de São João.
Mas a nossa história começa na Vila que se chamava São João em virtude da crença de seu povo de que esse santo fazia porque fazia milagres: curas, casamentos, reconciliações de casais e toda sorte de boas ações. Além do mais, se todos têm seus santos de fé, como a gente daquele quase esquecido lugar não teria? Quase esquecido porque eu me lembrei, senão seria totalmente esquecido. Gente do Governo nunca ia lá. Pra que? Nem mesmo, pasmem, nos dias de eleição, quando algum candidato a edil costuma aparecer em lugares mais remotos com montes de "santinhos" e promessas que jamais foram ou seriam cumpridas. De praxe.
Mas por que eu, que nem sou daquelas bandas, fui parar naquele remoto e calmo lugar? Conto já.
Um dia resolvi conhecer um pouco de nossa querida e bem amada Terra, mas não as cidades contaminadas pela civilização. Nada de Capital, cidade grande. Queria roça mesmo, cantões esquecidos, onde poderia achar alguma novidade não mais encontrada nas cidades. Peguei meu carrinho, um Fusca jambrega, mas que ainda rodava sem o perigo de enguiçar sério pelos caminhos. Não tinha mais nada que fazer naquelas férias, mesmo... E não me arrependi, embora os atoleiros que enfrentei. Sabe como é: roça é roça: todos os caminhos levam à lama quando chove e á poeira quando seca. Mas deixa prá lá; vamos ao que interessa. Estava eu rodando por caminhos até então desconhecidos para mim (e talvez para você também), ora parando em frente a um bar pra matar a sede (só refrigerante ou água; bebida alcoólica não, porque "quando dirijo não bebo e quando bebo não dirijo"). Mas quando meu Fusca sentia sede eu parava num Posto de Abastecimento qualquer e aproveitava para perguntar. (Minha mulher acha que eu não gosto de perguntar, mas às vezes não tem jeito). - Como é o nome desse lugar? - E os frentistas iam dizendo, cada um mostrando-se vaidoso do lugar onde trabalhavam e moravam.
Quando anoitecia, eu procurava um lugar para dormir e descansar. Qualquer hotel servia, já que os lugares por onde passava não passavam (ih, repeti!) de povoados ou cidadezinhas em que só as noites são estreladas. Portanto, hotéis sem estrelas.
Mas, como ia dizendo (aliás, escrevendo), cheguei a essa Vila de São João e logo reparei que era apenas um povoado, habitado por gente simples e, portanto, digno de maiores pesquisas antropológicas, se bem que não sou antropólogo, mas curioso assim como os demais. A curiosidade é a verdadeira impulsionadora do progresso... pensei.
Pergunta aqui, pergunta lá, tomei conhecimento de um tal sujeito, já velhusco, que apoquentava todo mundo daquele lugar com a mania de corrigir o português ali falado, ou coisa assim. De tal maneira já era a implicância com o tal velhinho fiscal da língua portuguesa, que lhe deram o "carinhoso" apelido de "Tibório do Português". - Lá vem o Tibório do Português, cochichava um para os demais conversadores, reunidos no "bar da esquina". (Para falar a verdade, não havia nenhuma esquina; é só por tradição). E aí a turma ia se dispersando, porque ninguém mais agüentava ouvir as observações lingüísticas do "Seu" Tibório.
Eu comecei a me interessar por esse "problema" daquele povo e resolvi tirar a coisa "a limpo". E nada melhor do que um daquelas vendinhas onde o pessoal em hora ociosa se reúne para tomar umas pingas e bater papo sobre as novidades do dia, que, para falar a verdade, eram pouquíssimas. Mas davam para divertir. - Você viu a Clara? A menina está ficando uma mocinha daquelas... Qual quer dia casa, dizia um ao ver uma menina passar de olhos baixos, já sabendo que estava sendo observada dos pés à cabeça. O outro fazia um sinal positivo com a cabeça, seguindo a menina-moça com aquele olhar malicioso que todo mundo conhece. - É, a menina está ficando bonita, mas a mãe... que jararaca, exclamava outro. Quem pegar, leva as duas... E todos riam daquelas observações simplórias.
Entrei na venda como quem não quer nada, mas, para disfarçar, pedi um como d água e uma pinguinha para não fazer feio perante os circunstantes. Fingi que gostei da pinga, estalando a língua e jogando o restinho pro santo. Como de praxe. Tinha que puxar conversa e nada melhor do que começar pelo tempo: - Que calor danado, parece que vai chover à tarde... comecei. Um lá respondeu: - É, moço, "tá" fazendo um calor dos brabos. Mas a chuva parece que vai tardar. Não "tô" vendo "núve" pesada, a não ser "prasquelas" bandas lá longe. - É... concordei. Tomara que não, se não o lamaceiro não me deixa mais sair.
Um outro, que soube se chamar Horácio, não deixou a conversa esfriar: - Mesmo que chova, dá pra passar, a não ser que caia uma chuvarada daquelas, mas não vejo jeito não!
E assim, papo vai, papo vem, a conversa foi se estendendo ao alcance de meu objetivo: saber daquele "Seu" Tibório.
Tomei coragem e perguntei: - Ouvi falar num senhor que chamam de Tibório do Português. Por que ele tomou esse apelido? Ele é professor?
- Que professor, que nada, moço. Como é o seu nome?
- Eu me chamo Hilário. E o seu?
- Zé Carlos. Mas pode me chamar só de Zé.
Está bem, Sr. Zé, acrescentando uma delicadeza. E o tal "Tibório do Português", como ele é? É daqui mesmo?
- Nasceu aqui, mas passou uns tempos numa cidade grande e voltou convencido de que sabia falar melhor do o povão daqui. Mas acho que é pura presunção. Não vemos nada de diferente no palavrório dele. Você acha, Horário?
- Nem um pouco. Parece até que fala mais atravessado. Uma vez eu estava contando um caso para o Erenildo quando ele chegou, ficou ouvindo um pouco e depois cismou de se meter na conversa: - Escute, Zé, ouvi você falar muito, mas confesso que entendi pouco. Tudo errado, tudo errado! Onde já se viu chamar pronome de "prenome", ora essa de "oressa", de perneta de "preneta", automóvel de "artomóve"? Fala direito, homem! Respeite a nossa Língua, se não ninguém entende que você fala. Lá na Capital, se ouvirem você falar assim vão chamá-lo de analfabeto. E com razão.
O Zé ouviu o sermão, mas não deixou por menos: - Sabe Seu Tibório, eu respeito a minha língua, e o "sinhô" respeite a sua! Além do mais, foi assim que eu aprendi a falar. Vá com sua língua de "Capitá" pra longe. Chega de sermão. "Tá" venho aquela trilha alí? Pois siga por ela que vai dar em sua casa diretinho. Vá! Mas o Seu Tibório não ligou para o fora e continuou a azucrinar a turma com aulas de português: - Não é "prenome", é pronome; não é "oressa", é ora essa, não é "preneta", é perneta, não "artomóve", é automóvel, não é "sinhô", é senhor, não é "capitá", é capital. Será que é difícil falar de modo escorreito?
- Que negócio é esse de "iscorreito"?, perguntaram todos a um só tempo.
- Já vi mesmo que vocês são uns iletrados sem esperança. Escorreito é o mesmo que correto, mas em linguagem mais rebuscada...
- Chega! Chega! Não agüentamos mais com esse palavrório esquisito. Chega a "distroncar" a língua.
- Destroncar e não "distroncar", emendou Seu Tibório.
- Será "porsíve", exclamou Zé, sentado num canto da vendinha.
- "Porsíve" não, bradou Seu Tibório: p ooo s s ííí v e l!. Soletrem comigo: p ooo s s ííí v e l".
- "Vige", o "home" num pára. Já tô ficando com vontade "sartá" por riba dele, cochicou Horácio no ouvido do Tonico, um que até então ficara calado, ouvindo o entrevero lingüístico. Mas Seu Tibório, que estava perto, ouviu tudo e continuou a lição: - "Vige" não; Virgem"! "Home" não; homem! "Tô", não; estou! "Sartá" nem pensar. Saltar!
Eu fiquei apreciando todo aquela discussão sem dizer nada. Só vendo, ouvindo e esperando até onde iria. De vez em quando um deles me dirigia um olhar como que pedindo ajuda, mas isso acabaria estragando minha curiosidade, além de ter que ficar mal com uma das partes. Preferi a neutralidade, pelo menos até que houvesse motivo para intervenção. Mas a coisa parecia que iria longe.
- Escuta aqui, Seu Tibório, se o sinhô é tão sabido, por que não é "professô" de escola?
- Lá vem José com "sinhô" outra vez. Quantas vezes preciso falar que é senhor? Além do mais você vem com "professô". É tão difícil falar professor? Além do mais, se não sou o professor dessa escolinha daqui é porque não quero e não preciso. E ainda, tiraria vaga das professoras que precisam, não é justo?
- Mas também não precisa "preturbar" os outros, né?
- Não se diz "preturbar", mas perturbar. Além do mais, eu não estou perturbando, mas ensinando a melhor maneira de falar. E vocês devem aprender as lições para não continarem a falar errado. Não é melhor assim?
- Pra "nois" tanto faz. Aprendemos a falar assim e é assim que continuares a falar. Todo mundo daqui "intende".
- "Nois", não. Nós, primeira pessoa do plural. "Intende" também não: entende, com "e" no princípio, emendou Seu Tibório.
- Seu Tibório parece que não tem nada pra "fazê" "si" não "enchê" nossa paciência, disse Horário.
- Sem querer ser impertinente, falou Seu Tibório, não se diz "fazê", mas fazer. Também não é "si", mas se e também não é "fazê", mas fazer, com "r" no final...
- Pois o "sinhô" é impertinente. Larga de nosso pé e vai ensinar o gato como se mia, o cachorro como se late, a vaca como se muge, o bode como se berra, que é "mió", disse Horácio já com cara de aborrecido.
- "Mió" não: melhor, m e l h o r, ouviu?
- Ouvi e não gostei. E quando me aborreço, "costumu" até "ofendê" os mais "véios" como o "sinhô".
- Será possível que não sabe falar costumo, ofender, velho? E ainda fala "sinhô"? Será tão difícil falar corretamente, meu conterrâneo?
Nessa altura eu já estava cansado de ouvir aquela discussão estéril, que não levaria a coisa alguma a não ser atritos, e resolvi ir fazer um lanche, pegar meu Fusca e seguir caminho. Compreendi porquê o Senhor Tibório era chamado de Tibório do Português, e com justa razão. E também que o povo do interior tem seu modo próprio de falar, que todos entendem, porque falam da mesma maneira. É um linguajar, embora errado, para nós que estudamos e freqüentamos as escolas das cidades, soa perfeitamente correto para aquelas pessoas simplórias para quem o aprendizado se faz de pai para filho, geração para geração. Até que a "civilização" chegue a esses recantos interioranos, simples, calmos, mas cheios de lições.
Resolvi sair daquela "Cidade de São João" e continuar a minha busca de novidades. Sempre as há.
MAGNO MATHEUS DA ROCHA
12/2005
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui