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Contos-->ROSA MARIA e o "sr. Armando"... -- 16/01/2006 - 10:48 (António Torre da Guia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


ROSA MARIA e o "sr. Armando"...

A imagem é de Artur Machado, Reis Pinto, do JN, escreve a azul e eu a preto sobre um impressionante caso verídico cuja análise faz doer a alma ao mais empedernido dos corações. Quiçá este entrelace jornalístico-literário produza o desiderato que Deus, cego-surdo-mudo-insensível, não contempla na sua poderosa diversidade. Caberá pois ao humano, com uma simples chamada telefónica, operar o milagre que mais enlevará os crentes, fará repensar descrentes e porventura apiedará agnósticos e ateus.

Custa a entender os fortes laços de amizade que unem Rosa Maria ao "sr. Armando", como lhe chama. E custa a entender, porque o preconceito é capaz de ler, ainda que com alguma dificuldade, a fome, a sede e o sono, mas intimamente não admite, em relação aos seus semelhantes, que o sexo complemente o essencial quadrado da existência humana com igual equivalência.

A Rosa Maria e o "sr.Armando", vivem num arremedo de casa, a cerca de 300 metros do Aeroporto Sá Carneiro, na Maia. Todos os dias pousam e levantam sonhos que ela não consegue ver, cega que está há cerca de uma década. O "sr. Armando", 73 anos inscritos num BI, está enrolado em cobertores. Apenas os olhos parecem dar um sinal de vida, vida esta que não tem qualquer sentido para continuar, mas vai-se mantendo dolorosamente, sabe-se lá porquê, ao longo de peníveis quotidianos que a sociedade e autoridades públicas em redor fingem ignorar.

Rosa Maria, de 42 anos e Armando vivem sob o mesmo tecto (com dois filhos do idoso) há 14 ou 15 anos ("Sou um pouco esquecida, sabe?"), na Rua do Pinhal, na freguesia de Crestins, com vistas para o aeroporto e para o movimentado IC24, ora onde aterram e levantam voo centenas de aviões, ora onde passam milhares de viaturas permanentemente, mas ninguém, ninguém imagina a simplicidade nua e crua do terrível drama em que subsistem um septagenário às portas da morte e uma mulher cega.

As poucas chapas de zinco do telhado parece que vão voar a qualquer momento. A porta só fecha quando se lhe encosta uma tosca mesinha de cabeceira. Mas também de pouco adianta, contra o frio cortante que entra por dezenas de frinchas. Perante a realidade à vista, tida em conta a situação física dos dois residentes, o raciocínio tende a escapar-se de quadro tão confrangedor. Dá vontade de fugir dali imediatamente para aliviar a catadupa de sentimentos que confusamente se entrechocam e nos indignam.

Um benemérito, Alexandrino Nunes, tentou protegê-los, oferecendo uma caravana, mas "a porta é estreita e a cadeira de rodas do sr. Armando nao cabe", explica Rosa Maria, que, no entanto, lhe encontra uma utilidade. "Quando o tempo não está tão frio durmo lá. Também guardo lá a roupa que me dão". Sim, porque a roupa que lhe é regularmente oferecida por Alexandrino Nunes e um grupo de amigos, mais a Santa Casa de Misericórdia da Maia, desaparecia. A Rosa Maria não vê e o Sr. Armando está completamente inepto, mas mesmo assim ainda há alguém que consegue descer muito mais baixo do que a própria miséria, trespassando o derradeiro degrau da desumanidade inconsciente que não cessa de galopar e adensar de repugnância a nossa cada vez mais estranha existência.

"Não o deixo"

O que mais espanta naquele cenário de miséria é o estado de limpeza do barraco. Melhor explicando, a ausência do cheiro que normalmente acompanha estas situações,
sinal de que a Rosa Maria, apesar de invisual, comoventemente demonstra que seria capaz de "olhar" por uma casa em condições.

As paredes estão negras da humidade, aqui e ali uma teia de aranha pende do tecto. Dois fogões e dois frigoríficos ensaiam uma estranha simetria numa cozinha quase nua, indicícios exemplares de que a estóica mulher cega "vê-e-não-vê", procurando quanto possível amenizar a enorme escuridão que lhe vai no corpo e na alma.

Enquanto falava connosco, Rosa Maria dirige-se, com segurança, a um prego onde pendura o saco do lixo que os filhos de Armando se encarregarão de levar. "Já pedi casa à Câmara. Mas estou tão acostumada a esta que não sei se conseguiria habituar-me. Já conheço estes cantos todos", hesita Rosa Maria. Na Câmara, pelo que sem dúvida se constata, parece não haver capacidade racional para considerar este caso uma urgente excepção a merecer sem mais uma eloquente atitude reparadora, produzindo num ápice o milagre que a Rosa Maria, pela sua tenaz heroicidade sobrevivente merece.

A preocupação maior da Rosa Maria é o sr. Armando. "Enquanto tiver forças trato dele. Quando faz muito frio, durmo na cama com ele, para o aquecer. Mesmo assim, acorda com a cara toda geladinha. Ele tem muitas doenças, mas não me importo de cuidar dele". A determinação da Rosa Maria é inequívoca. Está-se em face de alguém que ultrapassa em coragem a normalidade e é esta evidência que carece de instante, respeitoso e delicado trato.

Isolados do Mundo, cercados pela modernidade e um desejo simples:"Se fosse para uma casa tinha de ser no rés-do-chão. Por causa do sr. Armando", desabafa Rosa Maria.

Os milhares e milhares de peregrinos a Fátima, antes de venerarem a Virgem e pedir-lhe as suas bençãos, deveriam passar pela Rua do Pinhal e deixarem um pequeno auxílio à Rosa Maria. Talvez a Nossa Senhora lhes atendesse as súplicas de imediato. Imediatamente, sim, vou eu enviar este relato ao primeiro-ministro dos portugueses, engº. José Sócrates. A Rosa Maria é deveras uma pessoa muito especial e por consequência é credora de condigna consideração especial também.

Reis Pinto
António Torre da Guia



Som = Jenifer Rush em "The power of love"





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