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Contos-->Aleluia! -- 31/01/2006 - 21:15 (Bruno D Angelo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Júlio conversava com Júlia. Ou seria Júlia que conversava com Júlio? Tanto faz. Júlio e Júlia conversavam, separados por uma parede fina, fria, caindo aos pedaços. Mas isso. Era só aparência. Porque depois de tantas cabeçadas de ambos contra sua superfície, nada havia acontecido. Ela continuava ali, firme, rígida, dividindo em dois mundos distantes o casal apaixonado. Haviam sido presos há cinco dias. Talvez seis. Muito provavelmente sete. Uma semana? Não! Era muito tempo. Haviam desamprendido a contar. Os dias e as noites eram o mesmo para ambos. Aliás, confinados àquelas celas de tamanho diminuto tudo era noite. A mais pura escuridão.

No início, comunicavam-se por meio de gritos, até descobrirem que estavam tão próximos um do outro e separados por tão ridículo aparato que era possível sussurrar apenas e ser ouvido. Além do mais, isso trazia privacidade ao casal que podia discutir segredos, trocar confidências, chorar a solidão, sem a cumplicidade de terceiros. No entanto, dias se passaram e de quando em nunca ouviam os passos do carcereiro que lhes trazia comida. Nada mais. Daí, não fazia realmente nenhuma diferença se gritassem, se sussurrassem, se chorassem alto ou baixinho. Aparentemente, estavam lá sozinhos, separados por aquela parede que já tomava ares de instrumento de tortura. “Onde já se viu”, disse Júlio. “Uma construção fina o bastante para nos deixar trocar confidências, mas não o suficiente para ser demolida”.

Noite escura. Sexta-feira. As pessoas divertiam-se do lado de fora daquela masmorra medieval. Em uma bar em frente, tomavam cachaça, proferiam asneiras, cuspiam, mais de uma vez levantavam de seus acentos metálicos e enferrujados, erguiam o copo, bradavam, e tudo transbordava. Obviamente, dentro da masmorra medieval, a cinco andares, incrustados na terra, Júlio e Júlia não conseguiam ouvir a alegria dos seres embriagados e nem tão pouco a imaginavam. Não escutavam, não enxergavam, não sabiam onde estavam. Se era noite, tão pouco, se era sexta-feira, menos ainda.

Perscrutando o breu da cela com o olfato aguçado. Uma fungada forte para sentir o odor que empesteava o ambiente. Como se fosse preciso! Um outro sentido, o tato, já lhe dava indícios do que era aquilo; o contato de suas coxas com a calça empapada em urina. Contava agora com apenas quatro sentidos. Havia se transformado em um peixe que habita águas profundas. Não sabia há quanto parara de enxergar. No começo havia luz. Mais tarde, somente trevas. Tentara se acostumar com aquele blecaute intermitente, contudo, gradativo, sua visão fora ficando cada vez menos perspicaz, menos útil, até tornar-se completamente obsoleta. Tateando as grades de sua cela com os dedos empretecidos. Afagando a barba com os dedos do pé empretecido. Jogado no canto, cochichava consigo mesmo para que lembrasse de que ainda podia falar. E escutava seu próprio cochicho para que seu ouvido não atrofiasse tal qual os olhos.

Por onde andaria Júlia? Desde o dia 25 de setembro não havia mais tido notícias dela. Ou seria desde 27 de abril. Talvez 30 de fevereiro. Lembrava-se da época em que trocavam afagos através do aparelho de tortura medieval. Foram anos loucos, ou seriam semanas maravilhosas. A verdade é que Júlia andava sumida.

Mas quem era Júlia? Um dia perguntou-se Júlio, assustado com o nome que havia emergido de um de seus sonhos encantados. Dias depois, parou de sonhar com Júlia e apenas singelos unicórnios, correndo pela relva verde, iluminados pela luz branca mais brilhante, o acompanhavam durante o sono que tirava durante 22 horas e meia por dia. Por que unicórnios, Júlio não sabia. Aliás, não se lembrava de um dia sequer ter visto tal animal. Talvez, em uma segunda-feira a tarde, voltando cansado de mais um dia angustiante de servidão registrada em carteira, tivesse avistado um pastando em fronte de sua casa. Mas nunca tivera certeza.

Na uma hora meia por dia que passava acordado, coçava as feridas que povoavam sua carcaça. Feridas sintomas de noites sem sol. Feridas sintomas da desnutrição, sintomas estes por sua vez da falta de alimentação. Júlio, “esse era o nome dele?”, não lembrava de um dia sequer, desde que fora parar lá, de ter comido alguma coisa. Lentamente, porém, salpicava em sua memória, tímido, a imagem de um homem fardado que lhe trazia algo empapado em um prato artesanalmente confeccionado com papel alumínio. Ele chamava aquilo de comida, apesar do gosto de água suja. Júlio parou de falar. Aparentemente não possuía mais língua; ela descansava, amaciada, em suas paredes estomacais.

Um pequeno barulho despertou o homem que jazia no canto da cela. Mudo. Cego. E com ossos de vidro, ainda possuía um pouco de audição, guardava um pouco de discernimento dentro da cabeça, e arrastando-se foi verificar o que havia lhe arrancado do Reino do Nada. Com dificuldade, ergueu-se e com os dedos tateou o lugar de onde o barulho parecia ter saído. No canto superior direito da cela, próximo a janela gradeada com barras de aço e vedada com tijolos, o homem sentiu a terra úmida a escorrer pelas mãos. Sem parar para pensar, cravou os dedos naquela parede amolecida e com uma força extra-terrena começou a cavar sua liberdade. Aleluia!

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